quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Stress pós-traumático

Não é fácil de reconhecer, de admitir, mas confesso, como sportinguista que sou: sofro de “stress” pós-traumático. Quem não souber bem do que falo pode sempre recordar o Apocalypse Now e o Martin Sheen a revolver-se na cama de um quarto de hotel, angustiado, enquanto uma ventoinha no teto vai rodopiando lentamente, ouvindo-se em fundo a voz de Jim Morrison, cantando: “This is the end, beautiful friend/This is the end, my only friend/The end of our elaborate plans/The end of ev'rything that stands/The end”. 

Para mim, o jogo de ontem começou no domingo à noite. Ligo a televisão e vejo que o Porto está a ganhar por um a zero ao Braga. Um pouco mais tarde, volto a ligar e vejo que o Porto está a ganhar por dois a zero, faltando cinco minutos para o fim do jogo. Desligo e dou o assunto por encerrado. De repente, ouço uma barulheira vinda do andar de cima e temo o pior e o pior fica à frente do nariz quando volto a ligar a televisão: o Braga conseguiu empatar. Se o Porto ganhasse, não estaria sob pressão. Se perdêssemos, reduzia-se a vantagem, nada especial, nada a que não esteja habituado. Não ganhando, havia a hipótese de se alargar a vantagem e isso, sim, não é habitual, é uma pressão insuportável. Os sintomas apareceram sem avisar: palpitações, perda de apetite e insónias. 

Ontem, sabia que ia reviver mais um acontecimento traumático, como tantos outros [não, não vou falar pela enésima vez do Peseiro e da final da Taça UEFA no Estádio de Alvalade perdida para o CSKA de Moscovo]. Inicia-se o jogo e começo a suspeitar do regresso do Silas. Os três tristes centrais a trocar a bola entre si até que a ansiedade de um deles o leva a enfiar-lhe uma biqueirada para a frente. Em certas circunstâncias, uma bica na bola para a frente pode ser uma tentativa de jogar em profundidade, mesmo que involuntária, como costuma ser qualquer bica na bola, por definição. Mas se a defesa está em cima da sua área, a bica na bola para a frente corresponde a desistir, a dar a bola ao adversário. A minha esperança é que o Gil Vicente nada quisesse fazer com ela, que a tornasse a devolver, para que tudo tristemente se reiniciasse, com os três tristes. Nada disso, para azar ou sorte, vá-se lá saber, sempre que recuperava a bola, o Gil Vicente atacava, com rapidez e olhos na baliza. Não foi à primeira ou à segunda, foi à terceira, bola nas costas da defesa, aparece um japonês e golo do Gil Vicente. 

Aproveito o intervalo para fazer um telefonema, para ganhar tempo. A conversa flui porque nem sequer quero voltar a ver o jogo, não tenho coragem. Acabo por respirar fundo e anuncio: “tenho de voltar a concentrar-me no jogo, o Sporting precisa de mim!” [como qualquer adepto, acredito que se mudar de canto do sofá ou se desligar e voltar a ligar a televisão sou capaz de ajudar a dar a volta ao jogo]. E volto e tudo tinha mudado. Não reconhecia a equipa nem os jogadores. De repente, os três tristes tinham-se transformado numa arma de destruição maciça. O Ruben Amorim aprende e aprende depressa e bem, não tendo dificuldades em mudar o que pensou mal, o que está errado: saindo o  Neto e o Feddal para entrar o Gonçalo Inácio e o Matheus Reis. A bola andava com outra velocidade, o jogo ganhava emoção, o cerco apertava-se, e havia Coates, o terceiro central que faltava nesta história de centrais, Coates uma vez, Coates outra vez, capitão, grande capitão! 22.49h e benfiquistas e portistas desatam a cortar os pulsos.

A respiração volta ao normal. A arritmia foi-se. Os sintomas podem voltar, pois o “stress” pós-traumático esconde-se mas não foge, não nos abandona. O Benfica e o Porto não podem fazer o favor de voltar a ganhar? Custa-lhes assim tanto? Não conseguem compreender o sofrimento alheio? Não sentem empatia? Aguentei esta, mas não sei se aguento outra. Mas valeu a pena, cada minuto, como se fosse o último, uma vida. Pensando melhor, talvez aguente, outra e mais outra e outra ainda. Vamos tentar?

18 comentários:

  1. Caro Rui,

    Brutal a crónica! Brutal o jogo!
    Ainda tenho a voz do rei lagarto a trovejar-me na cabeça.
    SL

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    1. Caro João Miguel,

      Obrigado. Mas os agradecimentos vão para os jogadores e treinador que acreditaram até ao fim. Eu acreditei até ao filme e disse ao telefone que ia ajudar a resolver o jogo como se acreditasse mesmo nisso. A resposta veio em forma de mensagem: "Já está!".

      SL

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  2. Caro Rui Monteiro.
    Pior estive eu, pois eu estava somente a dois minutos a pé do Estádio. Ainda fui até lá, no final do jogo, mas apesar da grande molha que apanhei - aqui no Minho chove para caramba!!! - não me deixaram dar um abraço no Coates.
    Um abraço para si.

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    1. Meu caro,

      Chovia uma enormidade. O campo aguentou bem. Um grande amigo meu, arquiteto paisagista, esteve envolvido na instalação desse relevado. Tenho de lhe dar os parabéns.

      O resto foi o sofrimento do costume para acabar o jogo com um sorriso parvo e orelha a orelha, com cara de miúdo. É isto a que o Sporting nos remete: a voltarmos a ser miúdos.

      Um abraço,

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  3. Parabéns, mais uma crónica excelente.
    SL

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  4. Do melhor que tenho lido escrito pela sua pena. "Brutal" como disse o João Miguel. Obrigado e recuperação urgente. Precisamos de si!...
    Grande abraço e SL

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    1. Obrigado caro Álamo.

      Recuperado estou, mas isto não é fácil de aguentar. Estamos a ser felizes e temos um medo enorme de o deixar de ser e isso também nos deixa angustiados. Noutras épocas, já estávamos arrumados e não pensávamos mais no assunto e cada jogo era um jogo como qualquer outro. Agora, cada jogo é uma final, é o jogo a jogo do Ruben Amorim.

      Abraço

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  5. Parabéns! Excelente crónica!...como eu me revejo.Continuaremos a tentar SL
    PS O plano continua a ser: Esperar pelo fim que eles deitam-se

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    1. Meu caro,

      Obrigado.

      O plano é bom, é o jogo a jogo. Mas, para um adepto como eu, o jogo a jogo transforma cada jogo numa final e andamos nisto há meses e ainda faltam outros tantos.

      SL

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  6. Rui,

    muitos parabéns por mais este seu bem-humorado e irónico texto, na linha aliás do que nos vem habituando. Desejo sinceramente que um editor lhe faça justiça e que estas suas crónicas possam um dia aparecer, compiladas, em livro. Por exemplo, narrando a caminhada para o título de 2020/21, o que constituiria uma dupla-alegria para mim. Até lá, vamos jogo a jogo. E o Rui, crónica a crónica. Como tal, estou certo de que continuará a fazer de cada crónica uma final. Quem ganha somos nós.

    Um abraço.

    The end.

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    1. Caro Pedro,

      Não sei se chego ao fim, com ou sem Jim Morrison e os Doors. Isto está a ficar angustiante. No final, ficamos como os miúdos, meios parvos, a gritar como perdidos.

      Abraço

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  7. Só para dizer alguma coisa!
    No decorrer do jogo um amigo foi mandando mensagens : "os gajos do Gil fecharam os corredores, não conseguimos sair com bola jogável". "o meio campo não esta a funcionar, falta o pantufas"
    " o Antunes está a ser comido.....não te dizia, pumba até um japonês faz um golo ao Sporting!".
    ultima mensagem "Amorim tem que fazer substituiões, Neto e Feddal não acertam uma , Palhinha deu o estoiro"
    Acabei com a conversa, enervado : "Pá fála com o Amorim!"
    Não se se falou mas o grande timoneiro fez as 3 substituições que nos deram a vitória.
    Claro, se desse para o torto estava aqui a contar outra história.
    Grande Coates, herdeiro de Obdúlio Varela.
    SL

    jOÃO bALAIA

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    1. Caro João,

      Diga sempre, é sempre bem-vindo. Em equipa que ganha não se mexe e o Amorim não mexeu. Mas há jogadores que começam a ficar desgastados.

      O Amorim mudou o jogo nas substituições e, em particular, na substituições dos centrais. Foi pelos centrais e pela forma como carregaram o jogo que o Sporting começou a ganhar o jogo.

      SL

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  8. Caro Rui,
    Não lhe quero tirar o mérito, mas penso que o Sporting ganhou porque eu mexi no rato do computador na direcção da baliza do Gil Vicente... :)
    De resto, aproveito para também estar de acordo com o texto do Pedro Azevedo, as suas crónicas mereciam um destaque mais público (num qualquer jornal) - mas se assim não for, ficamos nós com o prazer de o ler só para nós.
    Saudações Leoninas
    Sérgio

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    1. Caro Sérgio,

      Muito obrigado.

      Essa do rato ainda não tentei. Parece-me uma excelente ideia.

      Quanto à edição, escrevo estas coisas mais ao menos ao correr da pena após os jogos, se não for muito tarde e não tiver nada para fazer. Só de pensar em editar o que escrevo fico logo cansado de tão preguiçoso que sou. Escrevo porque gosto e gosto ainda mais quando o Sérgio e tantos outros gostam também.

      SL

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  9. Caro Rui,

    Parabéns pelo excelente texto! Depois da época passada, tão sossegados que tivemos, ninguém percebe este nosso sofrimento... ou se percebem os adversários insistem em agudizá-lo!

    Amanhã teremos mais uma noite angustiante. Venha ela!

    SL

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    1. Caro João,

      Andámos demasiados anos sem levar isto muito a sério, sem acreditar seriamente não possibilidade de vencer. Não estamos emocionalmente preparados e, sobretudo, ainda menos preparados estamos para não vencer depois de se gerar essa expetativa.

      SL

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