terça-feira, 30 de junho de 2020

Déca(lage)...


Depois de Mourinho (O Verdadeiro) começaram a despontar com regularidade novos Mourinhos (normalmente falsos). O próprio Mourinho (O Verdadeiro) após algumas derrapagens surge, a espaços, como o novo Mourinho, emergindo das trevas. O mais recente entre os tais novos Mourinhos era (o tempo verbal é mesmo esse) Bruno Lage. No final da época passada o jornal A Bola considerou fazer uma edição no seu formato anterior (standard ou broadsheet), aquele formato grande que aparecia na série Duarte e Companhia, para melhor destacar o advento do novo Mourinho.

Quem conhece o mundo das Repúblicas de Coimbra sabe que cada ano vale por cem. Cada comemoração de aniversário é apelidada de centenário. No futebol português, a passagem do tempo obedece a uma calendarização muito própria, condicionada por matizes nem sempre observáveis a olho nu. Assim, no espaço de pouco meses, novos Mourinhos desgastam-se tão rapidamente que se confundem com a poeira da ausência de memória. Ao desgaste da memória, junta-se um processo de mumificação de alguns jogadores, processo esse que nos faz duvidar que estes alguma vez tenham sido profissionais de futebol.

A escala do tempo geológico, caracterizada por diferentes tipos de unidades e períodos de tempo indefinidos, divididos em muitas eras, é assim subvertida por uma rapidez de processos que permite a fossilização rápida de alguns organismos recentemente reconhecidos pela sua genialidade. É daqui que vem a tal frase do futebolês : o que é hoje verdade amanhã é mentira.

Parte significativa (a que realmente importa) do nosso futebol é decidida fora das quatro linhas. E esse futebol merece os seus estádios vazios. Entretanto, um novo Mourinho estará na forja…

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Jovane Witt Nureyev Cabral

É insólito ver jogar o Sporting num campo que mais parecia o campo de treinos do Estádio do Fontelo, em Viseu, da minha infância e adolescência. Mais insólito ainda é começar por sofrer um golo do Belenenses SAD que tinha anunciado estar em “layoff”; e o golo foi marcado nem mais nem menos do que pelo Licá, jogador que se encontra reformado há um par de anos. Não se pode pedir aos jogadores do Sporting para também estarem atentos a uma situação que se encontra na esfera de competências da Autoridade para as Condições de Trabalho. Mas a equipa recompôs-se rapidamente porque era dia de homenagear o Mathieu e o primeiro golo foi uma lembrança, uma simpatia do Coates, seu colega de sempre. 

Não se pode descrever o segundo golo no mesmo parágrafo do primeiro. Não se mistura o género humano com Manuel Germano ou a beira da estrada com a Estrada da Beira. O Jovane Cabral marca depois de um movimento que ainda hoje não foi possível levar à prática nem na patinagem artística, nem no ballet, apesar das tentativas, quer de Katarina Witt, quer de Rudolf Nureyev, no século passado. O terceiro do Jovane Cabral na marcação de uma grande penalidade acaba por ter uma história curiosa [fico na dúvida se não devia mudar de parágrafo também]. Na primeira tentativa, ainda antes do remate, o guarda-redes sai da baliza, simulando para a sua direita mas acabando por se lançar para a esquerda, e defende com a ponta dos dedos a bola entretanto rematada. Como o guarda-redes se adiantou antes do remate, o árbitro manda repetir e, à segunda, o Jovane Cabral não perdoa. A curiosidade, a surpresa não é suscitada nem pelo “penalty”, nem pelo remate, nem pelo golo: cinquenta anos de sportinguismo depois, vejo um árbitro mandar repetir um “penalty” a favor do Sporting depois de uma primeira tentativa falhada. 

Não sei se estou preparado para viver com a aplicação das regras nos nossos jogos. Deixa de ser bingo e passa a ser futebol e abre-se um admirável mundo novo, em que não somos a equipa do campeonato com mais amarelos ou o Coates deixa de saltar sem dois ou três jogadores adversários às cavalitas. Muita coisa me passou pela cabeça: jogar contra dez ou nove jogo atrás de jogo; dispor de uma dezena de minutos de desconto sempre que conveniente; ver o Acuña a vociferar e a aviar adversários sem levar cartões; ouvir os comentadores da arbitragem explicar o inexplicável; ler n “A Bola” hossanas e hossanas à visão, engenho e capacidade de gestão de qualquer presidente com bigode. 

Ao intervalo, parecia que queríamos tornar este jogo ainda mais épico ao trocar o Jovane Cabral pelo Francisco Geraldes. Como adepto sportinguista, desconfi(n)ado por natureza, imaginei a transformação do milagre em tragédia, com títulos do El Pais e relatórios da Organização Mundial de Saúde a falar de “disaster recovery”. Mas, ao passarem minutos atrás de minutos sem ver ninguém a estrebuchar, moribundo, com uma das chuteiras de um jogador treinado pelo Petit atravessada na carótida, compreendi melhor o que se passou (passou-se?): negociámos um armistício que permitiu concluir o jogo-treino com o Borja, o Doumbia, o Battaglia, e o Ilori ao mesmo tempo em campo, como contrapartida a deixar o Jovane Cabral no banco. 

Temos a melhor equipa desconfinada da Europa e o melhor jogador desconfinado do Mundo. Os progressos são incríveis e vêem-se à vista desarmada em momentos de jogo tão simples como no olhar penetrante do Borja na sua habitual marcação com os olhos ou na troca de bola de pé para pé durante dois minutos dos referidos Borja, Doumbia, Battaglia e Ilori. O Amorim demonstrou que as aulas presenciais e o ensino formal mais não servem do que para destruir as competências das pessoas. Queremos continuar desconfinados mas sem início de ano letivo!

terça-feira, 23 de junho de 2020

Ato falhado

Um dos acontecimentos mais surpreendentes do futebol português registou-se no jogo do Sporting contra o Paços de Ferreira. O árbitro marca “penalty” contra o Sporting, que não existe, e mostra amarelo ao Coates, que se encontrava a uns largos metros do local onde a suposta falta se realizou, confundindo-o com o Borja. A confusão entre os dois jogadores é uma impossibilidade có(s)mica. Para além da distância, um é muito, muito alto relativamente ao demais e ao outro também; um é branco e o outro é negro; um é calvo e o outro guedelhudo; um tem barba e o outro tem a cara impecavelmente escanhoada. É quase impossível confundir dois jogadores tão distintos, um uruguaio e um colombiano, cujo único elemento em comum é a camisola. 

O acaso não explica este acontecimento, este fenómeno. Está-se em presença de um ato falhado. Havia uma intenção inconsciente, subliminar. Pode-se pensar que essa intenção seria a de mostrar o amarelo ao Coates ou a de marcar um “penalty” quaisquer que fossem as circunstâncias. Não tenho a certeza que assim seja ou que assim tenha sido. O ato falhado é outro. O árbitro marcou “penalty” sem certeza, sem completa consciência de a sua decisão estar correta, tendo tratado de encontrar um subterfúgio que a permitisse reverter, tal a evidência da troca de jogadores. Conscientemente marcou “penalty” mas inconscientemente tratou de arranjar forma de o anular.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Prontos para apresentação aos sócios!

Estamos em pré-época e a minha disponibilidade para compreender as experiências do Ferro e do seu novo treinador-adjunto é naturalmente generosa. Mais dois jogos destes e a equipa está em condições de ser apresentada aos sócios. Está na altura de nos apresentarem um francês entradote que tem um pé esquerdo que passa a bola sempre redondinha para os seus colegas; um uruguaio alto e espadaúdo que limpa de cabeça todas as bolas por alto; um puto que joga a central com alma até Almeida e um cabedal que impõe respeito e permite ganhar uma e outra vez o corpo a corpo com os adversários; um puto brasileiro no meio-campo que tem um pulmão que não acaba, está em todo o lado ao mesmo tempo e ganha bolas atrás de bolas, embora ainda um pouco faltoso; um outro puto que se parece com o que saiu para o Manchester United (Jovane Fernandes Cabral, será?). Há mais uns putos interessantes, como o lateral esquerdo e o guarda-redes, que, como os restantes, são desconhecidos de todos nós. 

Neste jogo contra o Tondela, registaram-se evoluções relativamente aos dois anteriores, contra o Guimarães e Paços de Ferreira, embora ainda continuem presentes as dificuldades mas também as virtudes do modelo de jogo adotado. A evolução esteve na pressão mais alta sobre a saída de bola do adversário e numa maior facilidade em a ganhar em terrenos mais adiantados se não à primeira pelo menos à segunda. Num ou noutro contra-ataque, a equipa também se reorganizou para defender. Na segunda parte, a defender, a equipa esteve sólida, compacta e sem dar abébias ao adversário. No ataque, ao se jogar com três centrais, privilegia-se em demasia o jogo exterior, sem movimentos interiores com a frequência desejada dos extremos e apoio dos médios, existindo uma só referência na área e inferioridade numérica no meio. O ataque parece viver da irrequietude dos putos e, em especial, da insolência do referido Jovane Fernandes Cabral (será?). As oportunidades foram poucas mas aproveitadas com enorme avidez, permitindo a vitória por dois a zero. 

A arbitragem não precisa de apresentação ou reapresentação. Houve trezentos e vinte e oito “penalties” a favor do Sporting. Em todas as situações, vimos marcar por muito menos. Um empurrão não se basta e é preciso recorrer à cinemática e à mecânica para se saber se é falta ou não, fazendo-me recordar os conceitos de torsor e de momento (o momento é a força vezes o braço ou a distância). Bola na mão ou mão na bola também depende de análises profundíssimas sobre a relação entre volumetria e movimento dos braços. Com mais ou menos ciência, não parece adequado é não penalizar a placagem do “arrière” da equipa de rugby do País de Gales ao alto e espadaúdo uruguaio. Como todos sabemos, no rugby, uma placagem sem bola origina uma penalidade e a possibilidade de, na sua conversão, se somar (mais) três pontos.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Ao longe


Ouvi dizer que o Silas Amorim vale bem um estádio Eu Sou. São portas fechadas, segredos por revelar, são coisas do mundo, só se podem ver… ao longe (como diriam os Heróis do Mar). Os jogos são patuscos, rodeados de sombras e imagens projectadas pelos nossos sonhos; das bancadas exala um odor a compadrio misturado com publicidade enganosa. O Belenenses SAD está nas suas sete quintas, habituado a rumores de catástrofes anunciadas, há muito que treina e joga à porta fechada. Os comentadores fazem gáudio da sua importância sociológica e televisiva, ruminando impressões, discutindo vitupérios, anunciando novos mundos com amanhãs cantantes. Os jogos - vamos lá ver isso - são panaceias violentas que escondem o verdadeiro jogo, onde os peões se escondem do rei e do papa, conforme a religião. Treinadores afirmam-se surpreendidos, adeptos procuram, nem sempre em vão, o melhor viaduto para arremessar as suas tristezas, outros sobem a árvores e a prédios para justificar a sua função humanitária. Os jornais voltaram à normalidade possível, dentro da impossibilidade de outra. Fazem-se capas marcantes. Outras distantes. Os festejos são efusivos. Com ou sem máscara. Tudo a céu aberto. A liga dos calmeirões aterrará em Lisboa. Estamos preparados. A aposta na formação acompanha as dívidas e as dúvidas dos mais inconformados. São coisas do mundo, só se podem ver… ao longe.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

#viettolivesmatter

O Rúben Amorim dispõe de toda a minha tolerância e boa vontade. A expetativa de voltar a ver jogar o Mattheus Oliveira é de tal forma que estou disponível para continuar a assistir ao desespero do guarda-redes, de três centrais e de dois médios para levarem uma e outra vez a bola para o ataque. A tática é a do Silas mas parece mais bem estudada e treinada, atendendo ao posicionamento mais avançado dos dois alas. 

Esta tática deixa a equipa sempre em desequilíbrio numérico atrás, ao meio e na frente, conforme a dinâmica de jogo. Hipotecam-se três defesas em vez de dois quando a equipa está a atacar. Quando não se tem a bola, deixam-se dois médios a ocupar o meio-campo e a lutar contra três ou quatro adversários. Os três da frente ou estão condenados a comportar-se como um grupo de paraquedistas ou de outra tropa especial qualquer junto à linha do inimigo ou se recuam, para receber a bola entrelinhas, correm o risco de trazer adversários com eles e assim congestionarem ainda mais o espaço da saída de bola para o ataque. Mas, tratando-se de jogos de pré-época, precisamos de tempo para se tirar conclusões definitivas antes de se arranjar mais um treinador-adjunto para o Ferro. 

A primeira parte foi um desespero. Desesperava pela substituição do Vietto quando este, só para me chatear, desmarcou primorosamente o Sporar que foi indo como se nada fosse até nada ter sido. Para me deixar na dúvida, o Vietto lesionou-se logo a seguir. O Vietto é aquele jogador tão falho de intensidade que desejamos sempre ver outro no seu lugar; desejamos até o vermos e, quando o vemos, nos lembrarmos que o Vietto tem sempre a possibilidade de tirar um coelho da cartola; quando o voltamos a ver num qualquer jogo a seguir voltamos ao mesmo e assim sucessivamente até ao fim dos tempos. A primeira parte foi isto e mais umas tantas traulitadas dos jogadores do Paços de Ferreira liderados pelo grande Pêpa, essa gente indómita sempre disposta a talhar madeira alheia. 

A segunda parte foi um desespero, mas um desespero diferente do da primeira, um desespero de outra maneira e por outros meios. Parecia que podia ser diferente quando o Jovane Cabral enfiou um balázio ao ângulo na conversão de um livre direto, fazendo o primeiro golo. Depois, o Matheus Nunes levou um amarelo ridículo e vimos entrar o Eduardo para o seu lugar (sim o Eduardo!), quando tínhamos o Mattheus Oliveira no banco. O Paços de Ferreira encheu-se de brios e tentou fazer pela vida, aproveitando os seus jogadores toda e qualquer oportunidade ou oportunidade nenhuma para se atirar para o chão. Mas o Eduardo Quaresma estava seguro, o Coates limpava tudo o que havia para limpar nas bolas aéreas e o Max tratava do resto; o Camacho transformava a bola numa rã sempre que lhe tocava; o Plata aquecia, coisa que nunca deixou de fazer desde que substituiu o Vietto; o Sporar desaparecia em combate e foi abatido ao efetivo; o Borja continuava a ser o Borja; o Acuña estava melhor, embora os cinco quilos a mais prejudiquem o seu futebol; o Francisco Geraldes prometia ler o Memorial do Convento e, se lhe pedissem muito, também o Manual de Pintura e Caligrafia ou o Levantado do Chão. Sobrava o Jovane Cabral, que continuou a demonstrar estar em melhor forma do que todos os outros juntos. 

O jogo não foi um desespero, apesar de quer a primeira, quer a segunda parte, o terem sido. Pelas duas equipas teria sido, mas um árbitro serve para isso mesmo: para transformar o desespero em farsa e a farsa em normalidade. Não viu um agarrão ao Jovane Cabral, que existiu, e viu um empurrão do Coates a um jogador do Paços de Ferreira, que não existiu. Vídeo-árbitro para a frente, vídeo-árbitro para trás, e tudo voltou ao (a)normal: fomos gamados, como se não tivéssemos sido; o Paços de Ferreira foi beneficiado, como se não tivesse sido. Tudo normal, tudo farsa, tudo desespero e vice-versa.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Silas 10.0 num jogo escanifobético (*)

Meses à espera de Godot e sai-nos uma versão do Silas. Nada contra, barretes há muitos, mas também os há em barato ou em caro. O Silas 2.0 seria só mais um. O Silas 10.0 não é mais um, é único. Amorim tem os mesmos “powerpoints”. Tem uma ideia de jogo, um sistema tático também. Apesar de tudo, mudou alguma coisa. Entrou o Eduardo Quaresma e o Matheus Nunes e colocou o Camacho a jogar na ala direita e um lutador de sumo na ala esquerda (mais tarde vim a saber que era o Acuña; penso que entretanto lhe explicarão que só abaixo dos cem quilos se conseguem fazer certas jogadas no futebol). 

Nos primeiros minutos, pensei que o júnior fosse um rapaz alto e loiro que jogava do lado esquerdo da defesa, um tal de Mathieu, pois parecia o mais novo. Nesses minutos iniciais, a cada dois passes perdia-se a bola. Os três centrais pareciam três tristes tigres: bola para um, bola para outro, bola para o guarda-redes, com o guarda-redes a ter a responsabilidade de virar o sentido do jogo, fosse com o pé direito fosse com o esquerdo (o seu pior). Pouco a pouco, a defesa do Guimarães foi-se demostrando um buraco a jogar adiantada. Cada bola nas costas era um ai Jesus, Nossa Senhora de Fátima nos acudam! Numa dessas circunstâncias, o guarda-redes teve de sair da área para enfiar uma peitada na bola, permitindo ao Sporar tirar-lha, agradecendo a delicadeza enquanto esperava que ela se aquietasse para a empurrar para a baliza. 

Sem saber ler nem escrever, estávamos a ganhar. No entanto, continuámos como se nada fosse a trocar a bola atrás entre os centrais, os médios e o guarda-redes, porque o a ideia de jogo e o sistema tático são para cumprir. Aumentada a pressão dos jogadores adversários, os do Sporting começaram a atrasar ainda mais bolas para o Max e cada vez mais à queima e para cima da linha de baliza, enquanto este continuava a manter a responsabilidade de a fazer rodar para o lado contrário com o melhor ou o pior pé. Tantas vezes o cântaro vai à fonte até que amor com amor se paga e o Max com a delicadeza do Sporar devolveu a delicadeza do guarda-redes do Guimarães. Assim se permitiu o empate sem se abdicar da ideia de jogo e do sistema tático. Até ao final da primeira parte, o Jovane Cabral teve oportunidade de dinamitar a defesa do Guimarães e o Vietto de demonstrar que é um Postiga com sotaque. 

Na segunda parte entrámos a jogar melhor. O Camacho começou a perceber melhor o seu posicionamento e o Eduardo Quaresma desinibiu-se, apesar do Battaglia continuar a tropeçar em si mesmo e nos adversários sempre que pretendia levar a bola para o ataque. O Jovane Cabral continuava indomável (pareceu o único a não se limitar a comer “fast food” durante o confinamento) e, partindo a defesa adversária, isolou o Sporar para este com toda a sua comprovada delicadeza deitar o guarda-redes e empurrar a bola para a baliza. O bandeirinha ainda marcou falta de distanciamento social (faltava esta!), sem se dar conta que o Sporar estava com um daqueles chapéus em forma de helicóptero que as crianças de Arcos de Valdevez usam. A perder novamente, os jogadores do Guimarães foram porfiando e, como se sabe, quem porfia sempre alcança, para descanso de todas as partes envolvidas, como se viu em seguida. O Jovane Cabral descansou-nos e descansou o treinador quando, voltando a fazer das suas, expulsou um jogador adversário, permitindo que a equipa assumisse definitivamente a sua ideia de jogo e o seu sistema tático sem mais excitações ou eventuais riscos de marcar mais um golo que fosse. 

Por mim, matadas as saudades, parava-se o campeonato mais três meses e voltávamos todos aos emocionantes “briefings” diários da Graça Freitas. Não sei quem é que convenceu o António Costa desta ideia de se retomar o campeonato, embora tivesse o bom senso de perceber que isto não é coisa que se possa ver ao vivo. Mas, sem público, o futebol desnuda-se, deixa de ser competição e passa a ser jogo exclusivamente e, no jogo, nada mudou em Portugal: houve o vinte e cinco de abril de setenta e quatro, a adesão à Comunidade Económica Europeia, o fim da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, a criação da moeda única, o Euro, a ascensão da China na economia mundial, o onze de setembro e o atentado às Torres Gémeas, a crise financeira internacional e das dívidas soberanas na Europa e, finalmente, a pandemia do Covid-19 e nada se criou, nada se perdeu, nada se transformou. Cinquenta anos de acelerado tempo histórico que para o futebol português foram um único momento. Dantes dizíamos que não se conseguiam ver os jogos do campeonato nacional, agora dizemos que também não se conseguem ouvir. 

(*) Resgatei este adjetivo da recente releitura dos “Casos do Beco das Sardinheiras”, de Mário de Carvalho.