O título e o subtítulo da recente reportagem do New York Times não podiam ser mais inquietantes. O Benfica é comparado a um estado soberano e os jornalistas interrogam-se sobre a (im)parcialidade dos seus adeptos quando se constituem simultaneamente como procuradores ou juízes dos processos judiciais que o envolvem. Este artigo diz mais do que somos como estado de direito democrático do que do Benfica como clube ou equipa de futebol. Parece de propósito, logo agora que nos consideravam os nórdicos do sul da Europa ou a sétima democracia mais avançada do Mundo.
Este confinamento permitiu-me retomar a leitura de alguns livros que por uma ou outra razão tinha deixado a meio. Um deles foi “Porque Falham as Nações”, de Daron Acemoglu e James A. Robinson. É um ensaio histórico que procura explicar a relação entre a natureza das instituições – inclusivas ou extrativas – e a sustentabilidade do desenvolvimento económico e da prosperidade dos países. Aparecem figuras (figurões, melhor dizendo) como Mugabe, no Zimbabué, Kabila e Mobutu, no Zaire, Siaka Stevens e Joseph Momoh, na Serra Leoa, Karimov, no Usbequistão, ou Mubarak, no Egipto.
De acordo com os autores, o progressivo afastamento dos países mais e menos desenvolvidos não se deve a diferenças na qualidade e quantidade dos fatores de produção, no acesso à tecnologia, mas à evolução das suas instituições como resultado da sua interação com conjunturas críticas, desde a Peste Negra, à (des)colonização ou ao desmantelamento da União Soviética. Pequenas diferenças institucionais à partida determinam evoluções diferenciadas após essas conjunturas em instituições como o direito de propriedade, a representação popular ou a independência da justiça. Depois da Revolução Gloriosa, na Inglaterra, ou da Revolução Francesa, na França e Europa ocidental, assistiu-se à transformação das suas instituições, tornando-se mais (e mais) inclusivas. Em contrapartida, por exemplo, as instituições extrativas do colonialismo espanhol, português, britânico, francês ou holandês foram simplesmente apropriadas pelas novas elites políticas e económicas para seu benefício após a descolonização.
À falta de algo melhor em que pensar, entretive-me a analisar a evolução do futebol português a partir de idêntica perspetiva institucional da sua história recente e, em particular, das suas conjunturas críticas. Talvez a primeira conjuntura crítica dos tempos mais recentes tenha sido a constituição da Liga Portuguesa de Futebol Profissional como organismo autónomo da Federação Portuguesa de Futebol responsável pela organização das competições profissionais, associada à criação das Sociedades Anónimas Desportivas. Pareciam existir condições para um tempo novo, com os clubes transformados em empresas cotadas em bolsa e o futebol em indústria regulada que permitisse a atração de investimento e investidores. Rapidamente o “establishment” se recompôs e tivemos Valentim Loureiro como Presidente da Liga praticamente de 1992 a 2005, com o interregno de 1994-95, com Manuel Damásio e Pinto da Costa.
A segunda conjuntura crítica surge exatamente no fim desse ciclo, com o Apito Dourado, mas as mesmas instituições extrativas e os seus representantes continuaram a resistir sem grandes mazelas, com os dirigentes a manter-se e os árbitros também. No entanto, envolvidos nesse escândalo, Valentim Loureiro desaparece e Pinto da Costa perde influência, emergindo o Benfica e Luís Filipe Vieira. A sua afirmação de que são mais importantes lugares na Liga do que contratações de bons jogadores, em resposta à contratação de Jankauskas (ex-jogador do Benfica) pelo Porto, era o prenúncio da necessidade de tudo mudar para que tudo ficasse na mesma, parafraseando Lampedusa. Da colonização passou-se à descolonização e nada mudou, com exceção da hegemonia.
A terceira conjuntura crítica foi a sucessão de casos com nomes extravagantes (“mala ciao”, “e-toupeira”, “vouchers”, “emails”, etc.) envolvendo o Benfica, mas não houve pressão da opinião pública para que se mudassem as instituições. Ficou a denúncia, mas não foi aproveitada para a mobilização da opinião pública para essa mudança necessária. Nessa conjuntura crítica, Bruno de Carvalho e Pinto da Costa tiveram a oportunidade de obrigar o poder político a intervir, recusando-se pura e simplesmente a continuar a participar no campeonato. Cada um à sua maneira, mais Pinto da Costa do que Bruno de Carvalho, procuraram tirar benefícios de curto prazo mas sem a apresentação de plano radical de alteração das instituições assente na mobilização dos seus milhões de adeptos. Como sempre, no Sporting, não se consegue compreender a grandeza histórica e a dimensão do clube e muito menos transformá-las em poder de influência efetivo.
E chegámos ao ponto de os mesmos dirigentes do futebol que nos envergonham como povo se sentarem à mesa com os nossos representantes eleitos democraticamente para negociarem um estado de exceção no contexto da pandemia do Covid-19, sem qualquer condição ou contrapartida de reforma institucional. Num mar de dificuldades onde se encontram os portugueses, cancelam-se competições, concluem-se as temporadas das restantes modalidades, deixando em dificuldades financeiras atletas de enormes méritos, e permite-se que no futebol profissional tudo possa continuar para que continue a roda dos milhões sem origem nem destino conhecidos. Voltam os velhos tempos, calando-se os profissionais qualificados de quem a nossa vida e a vida dos nossos concidadãos dependeu e depende para se ouvirem os cartilheiros do costume. Tenham vergonha e não nos envergonhem!