sexta-feira, 29 de maio de 2020

É pelas virtudes que se é melhor castigado*


A história é conhecida. O veredicto fora dado antes de qualquer julgamento. A praça pública, outrora um espaço de liberdade da cidade, é hoje um largo com esplanadas em forma de tenazes onde se depreda, à vista de todos, a vida de alguns cidadãos.

Um ex. Presidente do Sporting Clube de Portugal foi ilibado (e não foi o único) de todas as acusações que sobre si recaíam em tribunal. Por outras palavras: declarado inocente. É claro que ainda não transitou em julgado, mas atendendo à tristeza de alguns semblantes, o luto será longo e difícil de ultrapassar. Não esperava grande coisa de alguns comentadores e jornaleiros a soldo, nem dos rivais de sempre que não apreciam qualquer prova de força da nossa parte, mas acreditava que a Instituição Sporting, ou alguém em seu nome, se regozijasse com esta decisão sobre um seu ex. Presidente. Ponto. Já agora, este (o site do Sporting estava indisponível) comunicado oficial é, no mínimo, embaraçoso. E é isso que traz água no bico.

A análise da imprensa de hoje, mesmo para um observador desatento, remete-nos para a incredulidade dos ingénuos. Ou tomam-nos por imbecis. É como se não se tivesse passado nada. A matilha de pasquins do costume, sempre pronta para alinhavar um bom membro decepado expondo-o num plinto ao sol, para ser devidamente servido aos abutres, passa pelos acontecimentos como cão por vinha vindimada. O CM, sempre tão solícito em servir bons repastos, faz uma minúscula chamada de capa, anunciando, sem se rir muito, o “agressor de Bas Dost com pena suspensa”, o melhor que conseguiram para aconchegar o terror que os trespassou. O Record e A Bola dão um destaque mínimo na capa ao veredicto do tribunal, depois de terem feito, juntamente com o CM, mais de trezentas mil capas antecipando o veredicto e aspergindo a fogueira com combustível.  A imprensa dita séria, enredada num jornalismo de tarefeiros e sem qualquer capacidade para fazer investigação e reportagem, fica-se pela notícia e os lugares comuns do costume.

Como diz o Vítor Oliveira, que já não precisa disto para nada, o que vai começar agora é o futebol negócio. Eu diria recomeçar. Há muito que o jogo não interessa para nada se não vier devidamente embalado em comissões, altos patrocínios e respectivas alvíssaras.


(*Nietzsche)

A sorte só protege o acaso

O sorteio e o futebol português têm uma longa história em comum. Houve bolas quentes e bolas frias no sorteio dos árbitros. Houve sorteio dos árbitros tão, mas tão condicionado que o resultado nem precisava de ser anunciado. O único sorteio que tem resistido ao tempo é o do simples cara ou coroa no início de cada jogo para escolha de bola ou campo. 

No sábado, li no Expresso que se realizou sorteio para distribuição de testes positivos e negativos à COVID-19 pelos jogadores das diferentes equipas do campeonato nacional. Os onze testes positivos calharam todos a duas das dezoito equipas, sendo nove falsos positivos. Por outras palavras, o sorteio estava condicionado ou metia bolas quentes e bolas frias. Fica-se sem saber se a empresa responsável por este sorteio também foi escolhida por sorteio e, a ter sido, por que tipo de sorteio. É caso para desejar que o sorteio dos testes e o sorteio da empresa que sorteia os testes sejam feitos por estrangeiros, parafraseando o Presidente do Benfica.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Adepto desconfi(n)ado de água fria tem medo (*)

Cada dia que passa, estou a confinar e a desconfinar pior. Confinei bem quando só se podia confinar. Admito que também deconfinaria bem se se desconfinasse de vez. Dantes, estava em casa e saía quando me apetecia. Agora, estou em casa confinado e, se saio, desconfino-me para, no regresso, me voltar a confinar. Estar em casa é estar preso. Sair é gozar a precária do dia. 

Ontem, desconfinei-me para ir à livraria. À entrada, besuntei as mãos com álcool-gel. A sensação foi a de as meter num alguidar de azeite. Nestas condições, ninguém se arrisca a pegar num livro, não vá deixar-lhe uma nódoa de gordura ou escorregar-se-lhe entre as mãos. O ritual de pegar nos livros, ler-lhes a badana e folheá-los ficou seriamente comprometido. Procurei concluir as compras rapidamente antes que a máscara me deixasse com os óculos completamente embaciados. Comprei “Um Cemitério para Lunáticos”, de Ray Bradbury, autor de um dos livros de referência da minha filha, a distopia “Fahrenheit 451”, e “O Doente de Molière”, do recém-falecido Rubem Fonseca, como homenagem a um dos meus autores de culto.

Estava para me vir embora, quando dei com “Um tempo sem idades”, de Maria João Valente Rosa. Trata-se de um ensaio sobre o envelhecimento populacional. Nem o tema nem a autora são do meu especial interesse, mas a estética das edições da Tinta da China é irresistível e qualquer razão é uma boa razão para se comprar mais um livro. [Se o leitor conseguiu chegar até este parágrafo sem desistir, deve-se estar a perguntar porque razão continuou a ler até aqui. Talvez ainda tenha a expetativa de uma revelação. Nada de mais errado. Eu próprio cheguei até aqui sem saber bem como e ainda menos o que vou escrever daqui para a frente.

O livro da Maria João Valente Rosa começa com três citações quase de enfiada, uma de Cícero, outra de Darwin e outra ainda de Einstein. Esta última é a bem conhecida: “Não podemos resolver os nossos problemas com o mesmo modo de pensar que usámos quando os criámos”. [Neste momento, faço uma pausa para pensar como é que vou meter o futebol nesta balbúrdia de palavras e na sequência deste aforismo. “Força, vamos, tu consegues!”

Não precisamos de Einstein para saber que quando vimos uma tartaruga empoleirada num plátano é sinal de que alguém que a lá pôs. [Sim, é verdade, as tartarugas não trepam.] Quando vimos Pedro Proença, Luís Duque, Mário Figueiredo ou Fernando Gomes a Presidente da Liga também percebemos que alguém os lá pôs. Para abreviar, quem os pôs foram os mesmos de sempre que pretendem que tudo continue como sempre. Pelos vistos, há problemas na Liga e esses mesmos querem arrear o Pedro Proença, faltando saber a tartaruga que se segue ou se deitam a árvore abaixo. Nesta altura percebe-se melhor o aforismo de Einstein e a razão subliminar que me levou a comprar o livro. [Foi difícil mas acabou, para meu alívio e do leitor que teve a paciência de chegar até ao fim.]

(*) Estes títulos acontecem-nos quando não temos nada para dizer e nos dói a cabeça. O Blogger devia ter uma funcionalidade que impedisse os trocadilhos ou só os autorizasse em situações excecionais, como nas prolixas reflexões de Fernando Gomes.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Nada se parece tanto com a sabedoria como a imprecisão*


Ontem, numa das televisões que nos fazem acreditar que a loucura é um meio de comunicação em voga, um jornalista (?) comentador exultava com a volta do futebol (a sério?) e dos (sobretudo estes) programas sobre o dito. Na verdade, como nunca se fala de futebol nesses programas, o enchimento de chouriços até tem sido possível, através de algumas ligações via Skype ou zoom. Foi precisamente através de uma dessas plataformas de comunicação que o debate sobre o sexo dos anjos (ontem) decorreu, com a participação de um ex-jogador de futebol, que dissertava enquanto se debatia com uma praga de mosquitos, e uma jornalista mediadora a tentar incendiar a coisa, sem grandes resultados. Estaria mais gente mas não consegui aguentar a pressão.

O futebol volta (se voltar) porque nesta etapa de desconfinamento ( é assim que se diz?) precisamos de um pouco de circo e de entretenimento para as massas, sem esquecer a tal “indústria” que carece de uma mãozinha para conseguir pagar as contas. Os três clubes grandes juntos a uma mesma mesa quer dizer muita coisa. E futebol sem público é algo a que muitos estão habituados.

Uma mãozinha e parte de um pernil é o que o jornal Record vai dando a esta direção do Sporting. Hoje ficamos a conhecer o plano (mais um) Varandas. É uma bola altura para conhecermos (mais) um plano. Ficamos a saber que se a pandemia fosse o ano passado teria sido o colapso. Foi o tal ano preparado ao pormenor e cujos frutos estávamos a colher, absolutamente maravilhados. Ficamos a saber de mais um relatório interno que arrasa a herança das anteriores direcções (que originalidade!). E ficamos a saber que, não sabendo dos inúmeros imponderáveis, que podem ou não acontecer, não necessariamente por esta ordem, o plano poderá, eventualmente, ter de sofrer alterações, ou mesmo ser totalmente reformulado. Ninguém faz a mais pequena ideia do mundo que vamos encontrar amanhã. Ou depois. Mas é bom saber que temos (mais) um plano.

(*algures num texto de De Santis, "O Enigma de Paris")

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Sergio Moro a Presidente da Federação Portuguesa de Futebol!

Ouvi há dias, na Globo News, uma entrevista de Ciro Gomes, eterno candidato a Presidente da República do Brasil, sobre a recente demissão do Ministro da Justiça, Sergio Moro, do governo presidido por Bolsonaro. Trata-se de um ministro com imensa popularidade resultante do seu papel como juiz no megaprocesso Lava Jato que levou à prisão, inclusivamente do ex-Presidente Lula. Na sua demissão, Moro fez uma série de acusações a Bolsonaro de interferência na Polícia Federal e em processos judiciais em curso que o envolvem e aos seus filhos. 

A este propósito, Ciro Gomes construiu uma alegoria muito divertida. Disse qualquer coisa como isto: “Moro vivia numa penumbra entrecortada pela luz diáfana de uns candeeiros vermelhos e lilases, onde passeavam à sua volta senhoras com pouca roupa e de taças de champanhe barato na mão, e demorou dezassete meses a perceber que se travava de um prostíbulo”. Na segunda-feira, quando comecei a ler o Público e dei com um artigo de opinião de duas páginas de Fernando Gomes, Presidente da Federação Portuguesa de Futebol, veio-me à cabeça essa alegoria. 

Fernando Gomes é Presidente da Federação Portuguesa de Futebol desde 2012. Foi Presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2010 a 2012. Antes disso e desde 1994, exerceu vários cargos de direção no Futebol Clube do Porto e na sua Sociedade Anónima Desportiva. Fernando Gomes demorou vinte e seis anos a perceber que: “não se pode permitir que se vendam ilusões aos jovens”, “os orçamentos dos grandes clubes não podem estar dependentes das participações nas competições europeias”, “[se deseja] um jogo com mais qualidade técnica, menos faltas, mais respeito pelas arbitragens e mais respeito entre pares”, “os clubes têm de aceitar que as regras precisam de ser duras, apertadas e para cumprir”, “[é preciso] terminar este ciclo de violência física e verbal que nada tem a ver com o futebol”. 

Fernando Gomes é dado a epifanias. Já em 22 de setembro de 2017, numa outras crónica no Público tinha descoberto que: “é necessário que os clubes saibam encontrar pontes de diálogo naquilo que os une e deixem de permitir que os seus símbolos, a sua história e a sua força sejam capturados para a apologia do ódio”, “o clima que se vive no futebol profissional português é inimigo do crescimento e da afirmação da indústria e também um péssimo exemplo para os mais jovens”, “as críticas [às arbitragens], que muitas vezes são inspiradas em dirigentes com as mais altas responsabilidades, potenciam o ódio e a violência”, “o clima de ódio tem tido reflexo também entre os adeptos”, “existem sinais de alarme no futebol português”. 

Aparentemente, o puro e simples proselitismo rende e tem boa imprensa. Ninguém pede e muito menos exige responsabilidades. Hipocrisia por hipocrisia sempre prefiro a de Sergio Moro: as suas revelações necessitam de menos tempo e sempre é consequente com elas.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Logo agora que éramos os nórdicos do sul da Europa!...

O título e o subtítulo da recente reportagem do New York Times não podiam ser mais inquietantes. O Benfica é comparado a um estado soberano e os jornalistas interrogam-se sobre a (im)parcialidade dos seus adeptos quando se constituem simultaneamente como procuradores ou juízes dos processos judiciais que o envolvem. Este artigo diz mais do que somos como estado de direito democrático do que do Benfica como clube ou equipa de futebol. Parece de propósito, logo agora que nos consideravam os nórdicos do sul da Europa ou a sétima democracia mais avançada do Mundo. 

Este confinamento permitiu-me retomar a leitura de alguns livros que por uma ou outra razão tinha deixado a meio. Um deles foi “Porque Falham as Nações”, de Daron Acemoglu e James A. Robinson. É um ensaio histórico que procura explicar a relação entre a natureza das instituições – inclusivas ou extrativas – e a sustentabilidade do desenvolvimento económico e da prosperidade dos países. Aparecem figuras (figurões, melhor dizendo) como Mugabe, no Zimbabué, Kabila e Mobutu, no Zaire, Siaka Stevens e Joseph Momoh, na Serra Leoa, Karimov, no Usbequistão, ou Mubarak, no Egipto.

De acordo com os autores, o progressivo afastamento dos países mais e menos desenvolvidos não se deve a diferenças na qualidade e quantidade dos fatores de produção, no acesso à tecnologia, mas à evolução das suas instituições como resultado da sua interação com conjunturas críticas, desde a Peste Negra, à (des)colonização ou ao desmantelamento da União Soviética. Pequenas diferenças institucionais à partida determinam evoluções diferenciadas após essas conjunturas em instituições como o direito de propriedade, a representação popular ou a independência da justiça. Depois da Revolução Gloriosa, na Inglaterra, ou da Revolução Francesa, na França e Europa ocidental, assistiu-se à transformação das suas instituições, tornando-se mais (e mais) inclusivas. Em contrapartida, por exemplo, as instituições extrativas do colonialismo espanhol, português, britânico, francês ou holandês foram simplesmente apropriadas pelas novas elites políticas e económicas para seu benefício após a descolonização. 

À falta de algo melhor em que pensar, entretive-me a analisar a evolução do futebol português a partir de idêntica perspetiva institucional da sua história recente e, em particular, das suas conjunturas críticas. Talvez a primeira conjuntura crítica dos tempos mais recentes tenha sido a constituição da Liga Portuguesa de Futebol Profissional como organismo autónomo da Federação Portuguesa de Futebol responsável pela organização das competições profissionais, associada à criação das Sociedades Anónimas Desportivas. Pareciam existir condições para um tempo novo, com os clubes transformados em empresas cotadas em bolsa e o futebol em indústria regulada que permitisse a atração de investimento e investidores. Rapidamente o “establishment” se recompôs e tivemos Valentim Loureiro como Presidente da Liga praticamente de 1992 a 2005, com o interregno de 1994-95, com Manuel Damásio e Pinto da Costa.

A segunda conjuntura crítica surge exatamente no fim desse ciclo, com o Apito Dourado, mas as mesmas instituições extrativas e os seus representantes continuaram a resistir sem grandes mazelas, com os dirigentes a manter-se e os árbitros também. No entanto, envolvidos nesse escândalo, Valentim Loureiro desaparece e Pinto da Costa perde influência, emergindo o Benfica e Luís Filipe Vieira. A sua afirmação de que são mais importantes lugares na Liga do que contratações de bons jogadores, em resposta à contratação de Jankauskas (ex-jogador do Benfica) pelo Porto, era o prenúncio da necessidade de tudo mudar para que tudo ficasse na mesma, parafraseando Lampedusa. Da colonização passou-se à descolonização e nada mudou, com exceção da hegemonia. 

A terceira conjuntura crítica foi a sucessão de casos com nomes extravagantes (“mala ciao”, “e-toupeira”, “vouchers”, “emails”, etc.) envolvendo o Benfica, mas não houve pressão da opinião pública para que se mudassem as instituições. Ficou a denúncia, mas não foi aproveitada para a mobilização da opinião pública para essa mudança necessária. Nessa conjuntura crítica, Bruno de Carvalho e Pinto da Costa tiveram a oportunidade de obrigar o poder político a intervir, recusando-se pura e simplesmente a continuar a participar no campeonato. Cada um à sua maneira, mais Pinto da Costa do que Bruno de Carvalho, procuraram tirar benefícios de curto prazo mas sem a apresentação de plano radical de alteração das instituições assente na mobilização dos seus milhões de adeptos. Como sempre, no Sporting, não se consegue compreender a grandeza histórica e a dimensão do clube e muito menos transformá-las em poder de influência efetivo. 

E chegámos ao ponto de os mesmos dirigentes do futebol que nos envergonham como povo se sentarem à mesa com os nossos representantes eleitos democraticamente para negociarem um estado de exceção no contexto da pandemia do Covid-19, sem qualquer condição ou contrapartida de reforma institucional. Num mar de dificuldades onde se encontram os portugueses, cancelam-se competições, concluem-se as temporadas das restantes modalidades, deixando em dificuldades financeiras atletas de enormes méritos, e permite-se que no futebol profissional tudo possa continuar para que continue a roda dos milhões sem origem nem destino conhecidos. Voltam os velhos tempos, calando-se os profissionais qualificados de quem a nossa vida e a vida dos nossos concidadãos dependeu e depende para se ouvirem os cartilheiros do costume. Tenham vergonha e não nos envergonhem!