quarta-feira, 3 de julho de 2019

Um herói

A bola não rola e as transferências não têm muito interesse, desde que deixaram de ser regadas com uns copos numas almoçaradas em forma de entrevista n’ “A Bola”. Também não sou do tempo em que as Assembleias Gerais dos clubes e os seus Relatórios e Contas fossem tema de conversa. Quem procura matar o tédio a escrever sobre futebol vê-se e deseja-se para arranjar tema. O de hoje é um tanto melancólico, de quem envelhece mas procura estar atento a uma qualquer ação que lhe permita continuar a ter esperança e sentido para a sua vida. Enquanto lerem, perdoem-me o moralismo: é da idade. 

Nasci em Viseu e aí vivi até aos dezoito anos. O regresso uma ou outra vez para rever amigos e familiares é sempre um pouco ao estilo Cinema Paraíso. Reconheço os espaços e as caras mas nada é como dantes. Nunca, mas nunca se volta ao passado porque deixou de ser habitável. Talvez se tenha maior consciência do que é ser viseense e do que é a cidade quando se vive fora, no confronto com outras identidades e outras cidades. Mantenho a imagem de que, em Viseu, era-se o que se nascia, apesar do dinamismo social de uma emergente classe média associada ao comércio e serviços, públicos e privados, nos anos setenta e oitenta. Mas o respeitinho ainda era muito bonito e “sim, senhor doutor!”, “com certeza, senhor engenheiro!” 

Há sinais de mudança, embora seja suspeito pela amizade que me liga a um dos vereadores da câmara municipal. Compreendo as suas dificuldades em transformar Viseu numa cidade capaz de se afirmar no contexto nacional como um dos principais polos de desenvolvimento da nossa interioridade (mais socioeconómica e demográfica do que geográfica). As oportunidades escasseiam e não se pode perder nenhuma. É preciso estar permanentemente a criá-las e recriá-las, como a Feira de S. Mateus, porque elas não caem do céu, como em Lisboa ou no Porto. Compreendo, por isso, que se tenha aproveitado a oportunidade de se associar o João Félix e a sua recente notoriedade à cidade de Viseu (a associação ao Viriato é historicamente mais duvidosa, a não ser que se pretenda distinguir um doce local em forma de vê e constituído por um género de massa doce recheada de coco, que fazia parte da merenda dos mais afortunados). No entanto, os heróis não são os que prometem fazer, são os que fazem. 

O Miguel Duarte era aluno de doutoramento em matemática no Instituto Superior Técnico. Decidiu juntar-se a uma ONG para salvar vidas no Mediterrâneo. Está acusado pela justiça italiana a uma pena que pode chegar aos vinte anos de cadeia. Não o conhecia, ninguém o conhecia, à exceção dos seus familiares e amigos, que devem estar numa aflição. Como ele próprio disse: “As pessoas estavam a morrer afogadas e nós impedimos que elas morressem. Era só isso que fazíamos”. Ele (só) fez o que estava certo. Faz muita diferença fazer o que está certo. Existem heróis, heróis verdadeiros e não de papel. O Miguel Duarte é um herói, é um dos meus heróis e tenho orgulho em ser seu concidadão, porque nasci em Viseu, no mesmo país onde ele nasceu.

10 comentários:

  1. Não sei se o Miguel Duarte será herói. Foi apanhado inocentemente, numa rede que misturava, ao que parece, auxílio desinteressado ao próximo com ajuda interesseira por parte de traficantes que se dedicam à emigração ilegal. O João Félix ainda será inocente, excepto quando dá as suas famosas piruteas ao ser apertado pelos adversários. Estará mais perto de ser "herói" para os benfiquistas de Viseu e do resto de Portugal. Mas pode acontecer que se transforme em vilão para os adeptos colchoneros. neste caso por culpa dos "traficantes" que lidam com a emigração legal.

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    1. Meu caro,

      Quando alguém está a morrer não lhe perguntamos a razão para decidir se o salvamos ou não. Salvar é o que está certo. Este texto não era propriamente para falar de emigração ilegal. Este blogue não serve para temas destes. Mas informo-o que o assunto é bem mais complexo e existe demasiada hipocrisia no discurso oficial. Quanto comer mirtilos, framboesas, amoras, morangos ou até beber um bom vinho é muito provável que tenha resultado de trabalho de emigrantes ilegais na apanha, embora os governos finjam que não estão a ver.

      O João Félix é só um miúdo que nem chega a ter consciência de si próprio. Atiraram-no para este turbilhão e assim vai andando até se esquecerem dele e arranharem outro.

      SL

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  2. Também sou do Distrito de Viseu e ainda tenho uma casa na cidade, herança que ando a tentar despachar.
    No meu tempo a cidade ainda era mais elitista, um clube onde a ralé não entava(eu incluído), ate um café na Rua Formosa frequentado pela "nobreza". Segui a minha vida em Lisboa, vou lá de longe em longe. Nunca gostei de Viseu.

    João Félix tem talento,os pais são professores, muito conceituados e respeitados, dizem-me.Uma família estruturada. O João tem tudo para dar certo. Mas...já!! Embaixador de Viseu, Viriato de Ouro? Então e o campioníssimo Carlos Lopes, ali de Vil-de- Moinhos?

    O Sr. Presidente da Câmara aproveitou o momento, o jovem ainda não teve tempo de mostrar grande obra. Mas caramba! 120 milhões não aparece todos os dias.
    Provincianismo bacoco!
    João Balaia

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    1. Caro João Balaia,

      Também ainda tenho casa em Viseu. Conheço bem o clube e o café que refere. As tias e os tios de Cascais e da Foz são ridículos. Os e as de Viseu são o possidonismo em forma de gente.

      O João Félix é um rapaz, um rapaz como tantos outros. Meteram-no nesta confusão. Tem que aturar estas secas sem perceber bem a razão. O Presidente da Câmara deu-lhe para isto!...

      SL

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  3. Caro Rui,

    Fui nado e criado em Barcelos. Depois andei por aí. Fica tudo perto de Viseu. Um grande abraço por esta crónica. Afinal, ainda há esperança. Mesmo que não seja verde.

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    1. Caro Gabriel,

      Todos nós somos daqui ou dali, nós os de Barcelos e de Viseu e, também, os que morrem no Mediterrâneo. Somos todos vizinhos, embora nem sempre tenha consciência disso.

      Quando se diz que faltam causas e os jovens não se interessam por nada, temos estes exemplos para nos demonstrar que são melhores do que nós. Diferentes, mas melhores (penso eu que tenho uma filha que também anda por este mundo à procura de si e de um sentido para a sua vida).

      Um abraço

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  4. Caro Rui Monteiro,

    Como muitos outros sportinguistas eu não sou de Viseu mesmo tendo nascido a 79,1 kms (1 hora e 13 minutos de carro segundo o Google Maps) e sou o único sportinguista que eu conheça aqui na Espanha onde me encontro por mais umas duas semanas. Estamos em toda a parte e cada um mais dividido que o outro! Felicito-o pela sua sagacidade em encontrar temas que por si sós em nada contribuem para a eternalização dessa divisão entre sportinguistas! Tarefa difícil para outros que se dizem sportingustas e que passam boa parte dos seus tempos a encontrar textos que favorecem essa divisão! Não vou citar nomes até porque sei que seria feio e demonstração de pouca classe.
    Estando ainda na Espanha ouvi hoje na RTPi que João Félix foi "confirmado" (ou "crismado") no Atlético de Madrid por 126 M Euros 12 dos quais irão directamente para as Ilhas que deram nome a um Porsche! Não percebi nada mas tomei-a com a colher como indicado na bula!
    Estou certo que me entende!

    Aceite um abraço com SL

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  5. *Eternalizar cheira-me a erro mas o meu smartphone não conhece patavina de inglês nem de português. E será que colher é com "o"? Se tivesse escrito "spoon" ou "cuillère" nem sei o que sairia!

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  6. Em Holandês seria "lepel" e em Español "cuchara"!

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    1. Caro Aboím Serôdio,

      O seu comentário é muito sagaz. Respeito todas as opiniões dos sportinguistas e todos os seus blogues pela razão mais simples: gostam do Sporting tanto ou mais do que eu! É ao Sporting e só ao Sporting que devemos prestar atenção. É o que nos une. Para nos dividir, temos seguramente outros temas. É que o futebol não é assim tão importante para nos dividir.

      SL

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