O jogo de ontem, contra o Feirense, começou muito depressa. O Bruno Fernandes mete a bola no lado direito para o Raphinha que avança com ela até fazer uma revienga à entrada da área a dois adversários e rematar em arco para o poste mais longe, fazendo o um a zero. Passado mais um quarto de hora, um passe em profundidade do Coates (noutros tempos a este passe chamava-se um alívio do Polga) o Bruno Fernandes a deixar bater a bola à sua frente e a enfiar-lhe um vólei por cima da cabeça do guarda-redes para fazer o dois a zero. As crónicas dos jogos do Sporting tornam-se assim muito mais difíceis de escrever. Não há tempo para perceber a tática das equipas, o modelo de jogo, as intenções e outras questões que levam tanta gente a ver jogos em Portugal e tantos e tantos a querer analisá-los, antes, durante e depois de se realizarem.
Mal tinha passado um minuto depois do segundo golo, o Coates domina mal uma bola que fica a pinchar à entrada da área, o Petrovic salta com um adversário e o árbitro marca “penalty”. Finalmente os treinadores portugueses tinham percebido a melhor forma de ultrapassar o Keizer, recorrendo à mesma fórmula dos tempos do Jozić: meter um deles a arbitrar os jogos. Ao princípio pensei que fosse o José Mota, mas uma análise mais atenta permitiu-me perceber que se tratava do Averell, o mais alto dos irmãos Dalton. Na SportTv um comentador explicou-nos que a intensidade que não tinha levado o Averell a marcar “penalty” numa falta sobre o Raphinha era diferente da intensidade que o tinha levado a marcar este. Fiquei esclarecido e percebi imediatamente por onde andava o Joe, o mais baixo dos irmãos Dalton. Tinha desconfiado quando no único lance de perigo até então dos da casa, ninguém tivesse reparado que nasce de uma falta que não existe e de um jogador que se faz à bola e atrapalha o Salin que se encontrava meio metro fora-de-jogo. Em alternativa, explicaram-nos que o Feirense era uma equipa muito forte nas bolas paradas. Ao longo do jogo percebi quão verdade era esta asserção: com a bola parada era para os seus jogadores muito mais fácil de lhe acertar do que quando se encontrava a rolar, acertando com mais frequências nas canelas ou em qualquer outro elemento anatómico dos adversários que estivesse à mão de semear.
O Sporting continuou como se nada fosse e passado cinco minutos o Bruno Fernandes cabeceia para uma defesa impossível do guarda-redes. No entanto, o jogo começou a ficar mais partido. O Sporting procurava pressionar alto e recuperar a bola o mais próximo possível da área do adversário, mas os do Feirense não estavam para brincadeiras e desataram às biqueiradas para onde estavam virados, explicando-nos benevolentemente o comentador da SporTv que pretendiam explorar a profundidade e as costas da defesa. O jogo foi prosseguindo com canelada aqui, canelada ali, canelada acolá e faltas marcadas para uma e outra equipa de acordo com uma distribuição binomial com uma probabilidade de ocorrência diferenciada em função da cor das camisolas. Embora se tenha começado a salientar um tal de Philipe Sampaio, acabou por ser um outro, Diogo Almeida, a constituir-se como o praticante de artes marciais mais destacado ao tentar arrancar a rótula do Acuña (a falta foi grave, mas tão, tão grave que levou um amarelo para aprender a comportar-se).
A segunda parte iniciou-se como se tinha concluído a primeira (onde é que já ouvi isto!). O Philipe Sampaio acabou por levar um amarelo pelo facto de ter efetuado três faltas, de acordo com a sinalética do árbitro com os dedos da mão (sempre tive a maior desconfiança na matemática de pessoas que contam pelos dedos). Seguramente aborrecido por esta falta de reconhecimento, o Philipe Sampaio aplicou um “ippon” ao Bas Dost dentro da área, vendo recompensado o seu esforço com um “penalty” (o Sporting tem uma excelente equipa de judo e é campeão europeu, mas um atleta como este não aparece todos os dias, deixando-se esta referência à melhor atenção do “scouting”). Alguém deve ter explicado, e bem, ao guarda-redes que a melhor maneira de defender um “penalty” do Bas Dost é manter-se de pé o mais tempo possível, embora se tenha esquecido de lhe dizer que se assim o fizesse provavelmente também não chegaria a tempo à bola, mesmo que ela fosse simplesmente passada para a baliza. O quatro a um veio logo a seguir, depois uma tabelinha entre o Miguel Luís e o Diaby, com o guarda-redes a defender a bola para a frente e um defesa do Feirense a metê-la na própria baliza só para evitar que fosse o Bas Dost a fazê-lo.
O Tiago Silva, o Platini de Santa Maria da Feira, nas conhecedoras palavras do comentador da SporTv, envolveu-se num curioso diálogo filosófico com o árbitro sobre a existência de Deus na lógica cartesiana. Procurou-lhe explicar que a consciência do perfeito pelos homens, imperfeitos por definição, pressupõe a sua existência. O árbitro, percebendo incorretamente a referência à imperfeição, pensando que dizia respeito à sua arte do apito, expulsou-o injustamente. A partir do quatro a um e desta expulsão, o jogo praticamente acabou. Os jogadores do Sporting foram trocando a bola entre si para evitarem os “kamikazes” fogaceiros, embora o Jovane Cabral, menos industriado na tática do engonha, ainda tenha rematado ao poste, seguido de uma recarga do Diaby por cima da baliza quando a tinha completamente aberta à frente do nariz. O Keizer aproveitou para rodar a equipa sem ter, porém, resistido à tentação de arriscar tudo por tudo ao meter o Jéfferson ainda antes do tempo de descontos. Quem viu o jogo na televisão não deu, mesmo assim, o tempo por perdido. Desalentado, o comendador da SporTv foi-nos explicando que este resultado e a passagem à “final four” da Taça da Liga eram contra o interesse próprio do treinador e dos jogadores do Sporting. Elaborou um raciocínio longo e complexo que envolvia a necessidade de continuar a jogar futebol e de desgastar jogadores numa equipa desfalcada e os jogos decisivos que se aproximavam em janeiro. Como disse, o raciocínio é complexo e o facto de o não ter percebido não revela nenhuma falácia mas a minha pura e simples imperfeição como humano que sou.
Este jogo merece duas notas finais. Assistimos ontem a algo que só tem paralelo no acontecimento de 13 de maio de 1917, na Cova da Iria, apesar da existência de alguns céticos, pelo simples facto de não haver televisão nessa altura e muito menos a CMTV. A transformação do Petrovic num jogador de futebol (para mim, o Gudelj já era) foi vista em direto e, por isso, ninguém pode ter dúvidas sobre este milagre. O Keizer ficou perplexo com a marcação do “penalty” a favor do Feirense, chegando quase a perder a fleuma quando falou com o quarto árbitro. Espero que continue sem perceber onde se meteu e o que o espera ainda. De outra forma, se se deixa condicionar e ao seu jogo pelas arbitragens, está entregue. A melhor forma de lidar com as arbitragens é procurar jogar futebol e marcar tantos golos quantos os possíveis para evitar danos. Com o Rei da Tática, o jogo de ontem estava suficientemente armadilhado para se transformar na sua fase final num “Nossa Senhora nos acuda”. Esperamos dele milagres como o do Petrovic. Não esperamos outros milagres, que não estão ao seu alcance, como transformar o futebol português num jogo em que ganha quem marcar mais golos e jogar melhor.