terça-feira, 30 de abril de 2019

Quem ri por último é de raciocínio lento?


Anda por aí um cartaz de um partido político em cujo slogan se pode ler mais ou menos isto: eles falam, nós fazemos. A frase de tão gasta apenas nos chama a atenção porque na imagem aparece o candidato a falar para apoiantes, ou seja lá quem for, não interessa. A falar, vejam bem. A frase não bate com a imagem mesmo que nos esforcemos por dar de barato que os cartazes não têm som e que deve ser muito difícil (acham?) pôr alguém a agir num cartaz. Não bate com a perdigota mas casa bem com propósitos previstos.

Recentemente, um jornal desportivo, em dia de jogo europeu (quartos de final da liga dos campeões) entre o Porto e o Liverpool, trazia uma capa cujo grande (e único) destaque era um jogador do Sporting de nome Wendel. E qual era o grande feito do Wendel, perguntam vocês? O grande (de)feito do Wendel foi ter ido assistir (pelos vistos sem autorização) ao Juventus – Ajax em Turim. Não está a causa a falta do rapaz, devidamente assinalada pela direção leonina, duas voltas ao ginásio, um jogo de fora e alguns contos de reis. Aqui interessa-nos o destaque dado de forma completamente inusitada a este episódio. Não se trata apenas de desvalorizar (totalmente) o jogo europeu do Porto, mas de continuar a sevar a agenda mediática de casos envolvendo o Sporting. Esta capa nada tem que ver com o futebol, com o falar de futebol, nem sequer se enquadra na agenda do dia futebolístico, apenas serve o propósito de continuar a queimar em lume brando a vida interna do Sporting. Como se isso fosse necessário, dir-me-ão. Claro que é. Milhões estão em jogo nos próximos anos. Não bate com a perdigota mas casa bem com propósitos previstos.

Este fim-de-semana o Braga perdeu mais uma vez (de goleada) com o Benfica. Até aí tudo bem. Já pensaram na conversa do Braga este ano relativamente ao campeonato? Entre sonhos e objetivos mais ou menos delineados ao sabor do vento, nas entrelinhas lia-se: 3º lugar. E é isso que convém aos dois do costume. Já aqui escrevi muito sobre a tentativa de bipolarização do futebol português, milhões estão em jogo, e com os critérios da liga dos calmeirões cada vez mais apertados, dois já é muito, três é demais.

No final do jogo, Abel não cabia em si de contente, por mais uma derrota (justíssima) com um opositor com estofo (e jantes de liga leve) de campeão. Nada a dizer da arbitragem, nada a dizer do resultado, lá como cá, uns justíssimos dez a três como resultado global. Alguns viram nisto uma porta aberta de saída do clube, outros (mais atentos aos cartazes publicitários), uma chance para treinar a (outra) equipa B do Benfica, outros ainda notaram um contraste entre as palavras do treinador e o comunicado emitido pela direcção do clube, onde se critica (supostamente) arbitragem.

Não perceberam que as palavras não batem com a imagem pretendida. Espremido (leiam bem o final) o comunicado é uma nota de pesar pelo quarto lugar, e um ataque pouco disfarçado ao Sporting, o verdadeiro (e único) responsável pelos pontos perdido pelo Braga, incluindo (imagina-se) as cabazadas sofridas de forma justa com o Benfica. Por isso Salvador se senta ao lado de Vieira, que nem sequer precisa de assistir ao jogo no balneário. Por isso Salvador se senta ao lado de Pinto da Costa a saborear um bom bacalhau ali para os lados de Adaúfe.  

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Há dias assim ou a balada da cidade triste

Há dias assim. Sabemos que vamos descobrir, quando nos atirarmos para dentro da banheira, que se vai exercer uma força vertical de intensidade igual ao peso da água que será deslocada pelo nosso corpo. Sabemos que vamos descobrir, quando nos sentarmos debaixo de uma macieira e nos cair no cocuruto da cabeça uma maçã madura, que esta nos vai atingir a uma velocidade igual a nove, vírgula, oito metros por segundo quadrado multiplicados pelo tempo de duração da queda, medido em segundos. Sabemos que vamos descobrir também que, substituindo-se o Gudelj pelo Doumbia, vamos jogar melhor. Sabendo que vamos descobrir o que ainda não foi descoberto, tomamos as necessárias precauções, vestindo-nos da cabeça os pés como deve ser, para não sermos apanhados a correr pela rua abaixo com o pirilau a abanar enquanto gritamos “Eureka! Eureka!” 

A descoberta demorou a ser descoberta. O Guimarães veio jogar à bola a Alvalade, o que se saúda. Pressionava a nossa saída da bola com dois jogadores, encostando outros dois às laterais para bloquearem o Acuña e o Ristovski, subindo sempre os jogadores do meio-campo quando o Doumbia ou o Wendell desciam para receber a bola. Durante quinze a vinte minutos fomos perdendo bolas sobre bolas e enfiando biqueiradas para a frente, com destaque para o Coates. O Keizer explicou ao Doumbia que se devia adiantar com o Wendell, arrastando os médios que os marcavam, para que houvesse mais espaço para sair a jogar. Por isso ou porque os do Guimarães deram o berro, a partir dessa altura foi uma profusão de oportunidades perdidas e de tiros ao barrote. O Acuña desmarca o Raphinha que, à meia volta, remata ao barrote. O Raphinha desmarca o Bruno Fernandes que, de primeira, remata ao barrote. O Raphinha centra e o Luiz Phellype desvia a bola de cabeça contra o barrote. O Bruno Fernandes desmarca na área o Luiz Phellype que, isolado e com o guarda-redes no chão, remata contra o barrote (Em Alvalade, qualquer um dos seis barrotes é nosso. Espera-se maior sentido de compromisso de cada um deles, atitude que sempre revelaram com a direção anterior e com esta deixa muito a desejar. Não gostei!). O Diaby demonstrou-nos que tanto acerta nas orelhas da bola com o pé esquerdo como com o direito, não sendo defeito mas feitio, e o Bruno Fernandes enfiou um balázio de fora da área que passou a um poucochinho da baliza com o guarda-redes a assistir com cara de Svilar. 

Entretanto, no meio deste despilfarro, o Acuña abalroou um adversário à entrada da área. Não sabendo se era dentro ou fora da área, o árbitro seguiu o manual de boas práticas tão apreciado pelos comentadores e fez vista grossa à falta mais que evidente. Recuperada a bola, o Acuña lançou o Luiz Phellype que foi ceifado por um defesa do Guimarães com o árbitro a fazer vista grossa também para compensar. Por momentos, o jogador do Guimarães pensou que era o Beckenbauer e tentou fintar a equipa toda do Sporting até perder a bola, que acaba nos pés do Bruno Fernandes. Recebendo a bola parado, faz um passe extraordinário de trinta metros, rasgando a linha defensiva do adversário e isolando Raphinha, que marca o primeiro golo não sem antes sentar o guarda-redes duas vezes. A (falsa) convicção dos comentadores da SporTv de que a falta teria ocorrido dentro da área e a (con)sequência imediata e direta da sua não marcação  foi o golo do Sporting, transformou a simples análise de um  hipotético livre num conjunto de relações de causa e feito que determinou aquele resultado final, como se se estivesse em presença da falsificação das notas de quinhentos escudos do Alves dos Reis e da necessidade de se realizar o julgamento de Nuremberg. A avaliação dos danos foi ao ponto de afirmarem que os jogadores do Guimarães estavam perturbados. Ora, se a qualquer um de nós nos enfiassem quatro no barrote não deixaríamos de ficar perturbados! 

Na segunda parte, o Guimarães entrou com outro plano. A equipa recuou para o seu meio-campo e deixou de pressionar à frente. Esperava-se um jogo de nervos em que nos iríamos ainda arrepender das oportunidades perdidas. Felizmente, nada disso aconteceu. O Renan Ribeiro, numa reposição de bola, colocou-a a quarenta metros no Raphinha do lado direito do ataque que a dominou magistralmente com um adversário a um metro de distância e enfiou-lhe três reviengas seguidas até a meter ao primeiro poste onde apareceu o Luiz Phellype a ganhar a frente a um defesa, como lhe mandou o Bruno Fernandes, e a empurrá-la para o segundo golo. Os jogadores do Guimarães não reagiram e continuaram com a tática que trouxeram do balneário, de jogar na expetativa e no erro do adversário. Os jogadores do Sporting não foram no engodo e nada mais aconteceu até ao final do jogo, a não ser uns assobios ou de adeptos do Guimarães ou de adeptos do Sporting com problemas de menopausa ou andropausa, conforme o género. 

O Sporting fez um excelente jogo. O Guimarães procurou jogar à bola e não foi feliz, porque o Sporting foi superior. Nada que não se espere que aconteça num jogo de futebol, dado que não podem ganhar as duas equipas. Não se compreende assim a razão dos comentadores da SporTv procurarem desqualificar a nossa vitória desqualificando os jogadores e a equipa adversária. Descobrimos o que sabíamos que íamos descobrir. Descobrimos ainda que existe uma qualquer lei da física ou da organização social que determina após um empurrão do Acuña a sucessão de um conjunto de eventos que culmina num golo do Sporting. 

Faz-me lembrar um livro do Pierre Siniac que li há muitos anos. Numa cidade francesa, sempre que uma astróloga acertava nas suas previsões da semana, dava uma choruda gorjeta a um pedinte, que com esse dinheiro ia jantar a um determinado restaurante. Como era vítima de assédio sexual desse pedinte, se sabia disso, a empregada do restaurante metia a sua folga semanal. Um agente de seguros, que estava apaixonado por ela, se não a via no restaurante ia jantar a outro, onde invariavelmente pedia coelho à caçador, que era caçado pelo dono de uma loja de artigos de luxo e vendido ao dono desse restaurante. Vendendo-o e não se tendo que deslocar para o dar a uma instituição da igreja, tinha tempo para arranjar a montra da sua loja. Arranjando-a, um dos seus clientes podia comprar uma prenda para oferecer a uma prostituta que não tinha relações com ele sem ela. Tendo relações com ele, não estava disponível para ter relações com o vendedor desses artigos, que assim se dirigia a essa loja, onde o esperava a esposa do caçador que estava por ele apaixonado. Não tendo de esperar pela sua paixão escondida, chegava a tempo ao jornal onde trabalhava, não ficando o diretor desse jornal deprimido por se sentir abandonado e não se embriagando. Estando sóbrio, disponibilizava-se para efetuar a cobertura jornalística no centro cultural do filme que ia passar e do debate que se lhe sucedia. Havendo debate, a responsável do centro cultural não tinha medo de ficar sozinha a encerrar a sala depois do filme terminar e assim abria a bilheteira. Havendo filme, o assassínio seduzia uma vítima e o homicídio acontecia. Se a astróloga fazia uma previsão que nessa semana ia acontecer uma desgraça na cidade, este ciclo infernal retomava-se e o homicídio acontecia sempre. “Balada da Cidade Triste” é o título deste livro. Também podia ser o título do campeonato nacional e do seu entorno mediático.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Bruno Fernandes, a inteligência nunca é defeito

Os melhores jogadores portugueses, regra geral, são transferidos muito novos para outras equipas de campeonatos mais competitivos. Encontrando-se numa fase muito precoce do seu percurso profissional e do desenvolvimento das suas capacidades desportivas e da sua personalidade, quase sempre o destino imediato é o banco ou a bancada, não se afirmando como titulares. O melhor dos melhores, Cristiano Ronaldo, andou uma época a aprender com o Alex Ferguson, no Manchester United. Muitos outros, não dispondo de treinadores que ensinem e tenham paciência, nem se chegam a afirmar nas equipas para as quais foram contratados. 

Bruno Fernandes confidenciou-nos que não tinha a certeza de estar preparado no final da época passada para jogar num desses campeonatos, necessitando de mais uma época intensa, com muitos jogos nacionais e internacionais, para se sentir confiante nas suas capacidades para enfrentar esse desafio. Podemos ver a inteligência do Bruno Fernandes em movimento todos os fins-de-semana. Tudo o que faz – um passe, uma finta, uma desmarcação, um remate – tem sempre o propósito de colocar a sua equipa mais próxima do objetivo do jogo: o golo. A essa inteligência soma uma personalidade vincada que lhe permite liderar, como capitão, os seus colegas de equipa dentro de campo e decidir por si a sua carreira. Comporta-se como o adulto que é: pensa pela sua cabeça, não se deixando levar pela propaganda mediáticas e os negócios que envolvem os clubes e empresários que têm em vista o curto prazo e não (toda) a carreira dos futebolistas. 

Não sabemos se a sua carreira continuará a ser bem-sucedida. Uma lesão, um treinador e as suas preferências táticas, um clube e as suas circunstâncias, podem-no impedir de se afirmar no contexto internacional como deseja e todos desejamos. Mas as condições pessoais estão reunidas para se afirmar como titular em muitas das boas equipas europeias. É importante que os jogadores, os clubes e os empresários reflitam bem sobre este exemplo. Muito jovens e sem a titularidade assumida nos seus clubes ao longo de algumas épocas, nem sempre os jogadores se encontram nas condições adequadas para jogarem com regularidade nas equipas que os contratam e nem todos conseguem, depois, dar um passo atrás para dar dois em frente. Sem a cupidez habitual, os clubes podem continuar a retirar benefícios financeiros das transferências, acrescentando-lhes os desportivos. Os empresários têm de decidir se representam os interesses dos jogadores ou os seus.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Onde está o Palocevic?

A meio da conferência de imprensa “pre-match”, entram na sala os três capitães de equipa do Nacional e fazem uma declaração de apoio ao seu treinador. Costinha leva os dedos da mão direita à cara e com o polegar e o médio esfrega os dois olhos, contendo as lágrimas, mas a voz embragada trai-lhe a emoção. Prometiam-nos sangue, suor e lágrimas. Era o mínimo que se esperava, esperando-se também que a SporTv, solidária, se deixasse de comentários e passasse como música de fundo o “Chariots of Fire”, do Vangelis. Qualquer que fosse o final, feliz ou infeliz, imaginava-me com uma lágrima ao canto do olho enquanto sentia um nó na garganta. Ganhando ou perdendo, este jogo contra o Nacional encerraria uma lição de vida. 

Começa o jogo e os jogadores do Nacional recuam e nenhum deles passa a linha de meio-campo para pressionar a saída de bola dos jogadores do Sporting, que começam por ficar desconfiados. Pouco a pouco, percebem que podem engonhar o início das jogadas vinte metros à frente do habitual. O comentador da SporTv ia-nos avisando que se tratava de um engodo, pois a qualquer momento o Palocevic iria fazer um lançamento longo para nos apanhar com as calças na mão. Avisados, os jogadores do Sporting continuavam a jogar a passo, só atravessando o meio-campo quando o Mathieu fazia o habitual passe tenso para o Acuña avançar com a bola pelo lado esquerdo. Sem o Wendell e com o Doumbia, a equipa ganhava mais presença física no meio-campo e pressionava melhor e sempre que a bola ia à frente os do Nacional viam-se e desejavam-se para a tirar de lá, apesar do comentador da SporTv nos continuar a ameaçar com o Palocevic. Com o Doumbia a seu lado ou um pouco mais à frente, o Gudelj finalmente parecia um trinco em condições, fazendo de segunda lâmina da Gillette, aparando os adversários depois dos cortes da primeira. O que se ganhava em consistência defensiva e em pressão sobre os adversários, perdia-se em espontaneidade ofensiva: o Doumbia é mais um jogador de passe e de lançamentos para os colegas do que, como o Wendell, de pegar na bola, correr com ela e tabelar para aparecer mais à frente, acelerando o jogo e passando a equipa a dispor de mais um elemento no ataque. 

Mesmo a mastigar o jogo, a equipa do Sporting ia criando sucessivas oportunidades de golo. Com o Bruno Fernandes sozinho ou mal acompanhado, apareceu o Diaby que, colocado do lado direito do ataque, fazia de Raphinha, mas mantendo a habitual relação conflituosa com a bola. Ninguém estranhou, portanto, que se fossem desperdiçando essas oportunidades. Quando ficou isolado, não se estranhou o remate com o bico da chuteira contra o guarda-redes que se encontrava esparramado no chão. Embora sem ser surpreendente, não deixou de ser brilhante a sua disputa de bola a seguir, tropeçando nela e permitindo que tudo acabasse num pontapé de baliza, bastando estar quieto para ganhar um canto. O Jovane procurava intercalar algumas dessas intervenções do seu colega com outras da sua lavra, igualmente inconsequentes mas com nota técnica mais elevada. Enquanto isso, o Luiz Phellype infernizava a vida dos centrais. Não se trata de um Slimani, mas também não é um Bas Dost. Permite à equipa jogar mais longo, porque recebe bem a bola, protegendo-a com o corpo até a entregar a uma colega, e pressionar melhor a equipa adversária quando recupera a bola. 

Ao intervalo, o empate a zero não deixava de ser lisonjeiro para a equipa do Nacional (expressão que deixaria um Gabriel Alves ou um Alves dos Santos orgulhoso do seu legado de lugares-comuns que constitui o essencial da escola de jornalismo desportivo nacional). No início da segunda parte, o comentador continuou a avisar-nos que ainda veríamos com quantos paus se faz uma canoa, quando o Palocevic engrenasse e o Avto fosse colocado do lado direito. Sem sinais de um e de outro, o Doumbia avançou mais e o massacre continuou com o Diaby a acertar nas orelhas da bola ou a acertar com a bola nas orelhas de um qualquer defesa adversário que estivesse à frente da baliza. Até que a meio da segunda parte, do lado esquerdo do ataque, o Acuña bate um livre direitinho para a cabeça do Coates que, empurrado por um defesa, não acerta na bola, sobrando para o outro lado onde aparece o Luiz Phellype a rematar sem a deixar cair para o primeiro e único golo da partida. 

A ganhar, a equipa do Sporting recuou, deixando as despesas do jogo aos jogadores do Nacional. No entanto, para grande consternação do comentador da SporTv, quando o Avto estava finalmente a jogar do lado direito, foi substituído. Aparentemente, o Costinha terá visto a sua cabeça a assomar do bolso dos calções do Acuña e tirou-o para meter um rapaz espadaúdo que costuma fazer de Ben-Hur nos filmes da Páscoa. Quando se esperava ver em ação o Palocevic, o melhor que se viu foi um remate de um jogador com o pé direito contra o seu próprio pé esquerdo, fazendo a bola sobrevoar a barreira e a baliza do Sporting. O árbitro marcou falta – dois toques seguidos pelo mesmo jogador na marcação de um livre – perdendo-se assim a oportunidade de se lhe entregar o “Diaby de Ouro” da partida. Com o Bruno Fernandes extenuado, os contra-ataques deram em nada, mas um nada convicto e resultante da convicção do Jéfferson e do Diaby. 

O jogo acabou sem que tivesse descoberto o Palocevic. O Palocevic permaneceu um mistério. O Palocevic é o bicho-papão a que se recorre quando as crianças não querem comer a sopa: “come a sopa ou vou chamar o Palocevic!”. As crianças, renitentes, comem-na e nunca chegam a saber se o bicho-papão existe mesmo. A sopa estava pejada de brássicas e leguminosas e só de nariz tapado se conseguia tragar. Tragámo-la, como se de óleo de fígado de bacalhau se tratasse, mas sob a ameaça do comentador da SporTv de chamar o bicho-papão, perdão, o Palocevic. Assim, em vez de uma história épica de superação e redenção, assistimos a um conto infantil para ajudar a engolir duas horas de tédio.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Oh, é apenas um Petit favor


Com a naturalidade de quem aborda um bom cozido à portuguesa num almoço de domingo, Petit, um tipo cuja (suposta) franqueza cheira a impunidade, lá foi dizendo o que toda a gente sabe mas não quer dizer para não estragar a surpresa: isto anda tudo mais ou menos (des)controlado no futebol imaginário cá do burgo. Os jogadores (daqueles que são normalmente titulares) fazem-se expulsar (só isto é todo um programa) para não jogar contra o Benfica. Por ordem expressa do treinador. Normalmente, esta ilegalidade lícita, ou ilicitude legal (eu sei lá), é muitas vezes feita para limpeza de amarelos contra equipas (supostamente) mais fracas, designadamente, em competições como a taça (igualmente reprovável - parece-me uma chico-espertice à portuguesa).

Neste caso, porém, retiram-se jogadores titulares de um jogo (fora de portas) contra uma equipa superior, logo limitando as hipóteses, já de si limitadas, de ganhar. É uma espécie de excursão ao estádio da Luz. Não se desse o caso de ambas as equipas lutarem por objectivos primordiais nesta época (título e descida de divisão), e poderíamos pensar estar perante relações entre subalternos. A verdade desportiva deve ser isso. Como diria o outro, o chato é que isso mexe com muito dinheiro. O Sporting, que nunca sabe em que rua fica o Canadá, perdeu uma pipa de massa com a derrota em casa do marítimo o ano passado. É o que dá jogar a sério. A seguir foi o que se viu.

Não são necessárias malas com dinheiro. Perde-se, e com muito gosto.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Quando uma pessoa muito inteligente encontra outra mais inteligente ainda

Uma pessoa muito inteligente encontra outra mais inteligente ainda num bar frequentado por pessoas muito inteligentes e por outras mais inteligentes ainda. Estabelece-se entre eles o seguinte diálogo. 

Pessoa muito inteligente: Se se colocasse o Bruno de Carvalho num clube, o Bruno Lage noutro e o Bruno Fernandes noutro ainda, qual o clube dos Brunos ganharia o campeonato? 
Pessoa mais inteligente ainda: O clube do Bruno Paixão! 
Pessoa muito inteligente: É do Benfica, não é?! 
Pessoa mais inteligente ainda: Como é que adivinhou?! Bastou-lhe uma simples resposta a uma simples pergunta sobre Brunos? 
Pessoa muito inteligente: Não. Reparei que traz uma camisola do Benfica vestida. 
Pessoa mais inteligente ainda: É muito inteligente! 
Pessoa muito inteligente: Obrigado, mas é mais inteligente ainda!

(Texto escrito depois de ler "Pastoralia", de George Saunders, com tradução e prefácio de Rogério Casanova)

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Nem à chapada!

A entrada rápida em jogo do árbitro, vamos designá-lo assim por comodidade, surpreendeu a equipa do Aves. O Mathieu e o Renan Ribeiro ficaram naquela situação do “vai tu, espera que vou eu”, intrometeu-se um pequenote que ganhou a bola e foi derrubado pelo nosso guarda-redes fora da área e a meio-caminho da linha de fundo. O comentador da SporTv, vamos designá-lo assim por comodidade também, deixou de ver pela sua própria retina e passou a ver pela retina que o árbitro lhe emprestou. O julgamento não podia ser mais claro: “lance de golo eminente” e expulsão do Renan Ribeiro. Horas e horas e dias e dias de treino, táticas de engonha, de provocação, de estacionamento de autocarro deitados ao lixo em quatro minutos. Os jogadores do Aves ainda procuraram fazer como se nada se tivesse passado, mas há sempre um problema de má consciência nestas circunstâncias: jogar contra menos um aumenta a responsabilidade e reduz o leque de desculpas. 

Como sempre acontece nestes jogos contra adversários mais frágeis, a equipa do Sporting continuou com o início da construção de jogo a dois, com o Gudelj mais avançado relativamente aos centrais e sem se mexer, não proporcionando linhas de passe seguras e obrigando-os a avançar com a bola sem destino, a passá-la para o lado ou a esperar que o Wendell recue para a receber e encontrar uma nesga para correr com ela ou a passar a alguém para que se inicie o ataque. Com menos um, o Bruno Fernandes encostou à esquerda e, com o apoio do Acuña, constituiu-se a dupla Asterix & Obelix superior em número e em armamento ao acampamento romano do Aves. O Bruno Fernandes começou por ameaçar com um remate de fora da área, para um boa defesa do guarda-redes, seguido de um perigosíssimo lançamento lateral e de uma combinação com o Acuña que lhe permitiu o centro para o Luiz Phellype marcar de cabeça o primeiro golo. Enquanto isso, o árbitro e o comentador mantinham uma abordagem conceptual e analítica rigorosa, não se vendo o segundo amarelo nem se ouvindo qualquer explicação quando um jogador do Aves, vamos designá-lo assim por comodidade também, placou o Bruno Fernandes quando este se esgueirava para o ataque. Esse jogador manteve o mesmo registo na segunda parte e só o Inácio o conseguiu tirar de dentro de campo, à força (de substituição, entenda-se). 

Mas, com o Sporting, o mais óbvio dos destinos nunca se cumpre ou cumpre-se por atalhos. O pequenote da expulsão recebeu a bola do lado esquerdo, correu com ela para o meio acompanhado pelo Gudelj que, pelo caminho, lhe deu um branca e abandonou a marcação, permitindo-lhe tabelar na zona central, aparecer isolado e ser derrubado pelo Salin, que saiu da baliza à maluca e fez esse favor ao adversários quando este se preparava para sair pela linha do fundo. “Penalty” e golo do empate do Aves. Estamos sempre condenados a ver a pedra escorregar pela ladeira abaixo para a ter que a transportar às costas até ao cimo. Desta vez, não demorou muito tempo a voltar a colocá-la onde estava. Falta a meio do meio-campo do Aves, constituindo os seus jogadores uma barreira compacta que, após um ligeiro franzir de sobrolho do Bruno Fernandes, debandam em pânico para a linha da sua própria baliza para evitar o golo, doença que tem vindo a ser classificada como Síndrome de Svilar. De uma forma ou de outra, o golo é sempre inevitável e a profecia cumpre-se a si mesma, sendo decisiva a precisão do remate do Wendell nas orelhas da bola que a leva direitinha ao pé esquerdo do Mathieu para lhe dar o destino adequado. 

A perder por dois a um e a jogar com mais um jogador, o Aves sentiu-se na obrigação de retirar um dos seus cinco defesas e colocar um extremo, passando a assumir o jogo e a atacar de forma continuada. Atacar é uma simples forma de descrever os sucessivos passes (in)consequentes entre os defesas e os médios para conseguirem levar a bola até uma das laterais e lhe enfiarem uma biqueirada para dentro da área. O Coates e o Mathieu chegavam e sobravam para as encomendas, beneficiando ainda da preciosa ajuda do Derley, avançado centro, que aliviava quando os centrais não o faziam competentemente. Assim, nada de muito relevante aconteceu na segunda parte, com exceção dos últimos minutos. O Acuña isolou-se do lado esquerdo e rematou contra as pernas do guarda-redes. Mais tarde, arrancou com a bola e foi placado por um adversário à entrada da área, sem que tivesse sido marcada o livre (perigoso) e mostrado o segundo amarelo ao jogador do Aves, tendo o árbitro optado por lhe mostrar um amarelo por se ter levantado e esbracejado, enquanto vociferava qualquer coisa em argentino, que está para o castelhano como o português para o brasileiro. O comentador da SporTv criticou o irritante hábito do Acuña de se deixar derrubar em lances perigosos que podem levar à expulsão dos adversários e de não ficar satisfeito quando nada é assinalado. O Raphinha isolou-se e, depois de dominar a bola à Diaby, rematou contra o guarda-redes. 

Estava-se naquela fase em que o Aves tirava os mais franzinos e metia os mais altos e gordos, quando o Bruno Fernandes resolveu cumprir uma promessa qualquer que tinha feito ao Bruno Lage. O Ristovski enfiou uma bica na bola para dentro da área e o Bruno Fernandes fez de Jardel e voou sobre os centrais, rodando o pescoço a preceito e de forma a acertar na bola com a cabeça no momento certo e fazendo-a entrar na baliza sem defesa possível, diversificando o seu portefólio de golos. Pensava-se que tudo estava acabado, mas o jogo não se podia concluir a não ser da mesma forma como se tinha iniciado. Depois de uma chapada no Coates, à qual o árbitro fez vista grossa, o Derley marca o segundo golo (que foi anulado pelo VAR). Revistas as imagens, o comentador começa por afirmar que a chapada não era clara para, perante as evidências, concluir mais tarde que era subjetiva. Quando enfardava um par de galhetas da minha mãe enquanto me dizia que lhe doía mais a ela do que a mim, não a compreendia. A chapada era objetiva e mais objetivo ainda era o latejar das bochechas e o tom vermelhusco que assumiam. Afinal ela tinha razão. As chapadas sempre podem ser subjetivas e a dor tanto pode ser de quem as dá como de quem as leva. As chapadas podem ser atos de amor e dadas de luva branca. Não interessa a literalidade, mas a metáfora. Anos e anos a recalcar e a sublimar, para chegar a este tardio entendimento. Um abraço ou uma chapada, tanto faz, ao comentador da SporTv pela redenção proporcionada.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Audita-me, cariño


Por falar em novidades: andamos uma semana (pelo menos), na praça pública,  a discutir as andanças de um suposto protocolo com o Batuque. Gosto do nome. Nem uma, ou duas palavras, sobre as comissões pornográficas pagas pelos clubes a empresários (intermediários, é assim?). No exercício anterior o Benfica gastou cerca de dezassete milhões nas ditas. O Porto dezasseis. O Sporting, a reboque, foi até aos dez. Os dezassete pagos pelo Benfica representam o terceiro maior orçamento (comparativo) da liga, à frente do Braga. O Real Sport Clube (quem?) pagou mais de um milhão, mais do que o Vitória (Guimarães), e muito mais que a maioria dos clubes da primeira liga gastam em orçamentos. Tudo limpo, limpinho. E sem qualquer investigação. Se recuarmos, verificamos que nos exercícios entre 2015 e 2018, o Benfica gastou mais de setenta milhões em comissões, o Porto mais de quarenta, e o Sporting cerca de trinta milhões. O silêncio sobre esta ilusão do futebol português é suficientemente ensurdecedor para deixarmos de acreditar (apenas) em batuques. Auditar sim, mas com o carinho que todos merecem. 

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Audita-me, por favor


Não é preciso contactar o Guinness World Records para sabermos que o Sporting detém o record absoluto interestelar (inclui os mais recentes buracos negros) da realização de auditorias. Sejam estas forenses, de gestão, ou simplesmente da tanga. Ninguém as faz tanto como o Sporting, e com os resultados que se conhecem. Para além das auditorias, somos igualmente muito fortes em reestruturações, sejam da dívida, do passivo, das equipas, da administração, ou simplesmente da própria reestruturação, ou reestruturações anteriores.

Ninguém nos supera em termos de limpeza(s): direções anteriores, direções anteriores à anterior, direção em exercício, o carinho que nutrimos pela limpeza supera mesmo em número a quantidade de assembleias gerais que fazemos para as nutrir de preceitos jurídico-administrativo/sádicos. Os tribunais entopem com as ações impostas por (supostos) sportinguistas contra (supostos) sportinguistas, debatem-se formas de Sportinguismo debaixo de água e criam-se neologismos que dividem em várias ramificações os sportinguistas, para gáudio de todos os outros adeptos que assim não precisam de mexer uma palha para enterrar mais o cadáver.

Esta semana tivemos mais uma auditoria (supostamente) reveladora. Nada de novo. A pronta divulgação da mesma na praça pública (esparramada na sua totalidade) sem qualquer apresentação prévia aos sócios e adeptos do Sporting, demonstra bem que não temos necessidade de toupeiras, hackers, ou quaisquer fugas de informação. Somos um livro aberto. É um modelo de gestão como qualquer outro. Aposto que, a seu tempo, também será devidamente auditado.


Preço de tudo e valor de nada

“Cínico é o que sabe o preço de tudo, mas o valor de nada” é um excelente aforismo de Oscar Wilde e vem a propósito do último livro de Mariana Mazzucato, que acabei de ler (“The Value of Everything – Making and Taking in the Modern Economy”, na versão original, dado que a tradução portuguesa é incompreensível). Para os Clássicos, o valor de um bem ou serviço constituía o somatório do valor de trabalho acumulado na sua produção. Para os Marxistas, a definição não era muito distinta, resultando a mais-valia da expropriação do valor àqueles que efetivamente o produziam: os trabalhadores. Para os Neoclássicos, o conceito alterou-se radicalmente: o valor não é objetivo, depende das preferências subjetivas dos consumidores e, portanto, tudo o que tem preço tem valor e o valor é o seu preço. Esta alteração de conceitos tem consequências na forma como analisamos o funcionamento da economia, classificamos o que é produtivo e improdutivo e discernimos lucros de rendas. 

A auditoria realizada à gestão da anterior administração do Sporting revela que foram pagos cerca de 3,2 milhões de euros em comissões na transferência de Alan Ruiz. Não se trata de uma situação singular, repete-se em todas as transferências envolvendo os mais diversos clubes. Os jogadores constituem ativos resultantes de investimentos realizados pelos clubes que desta forma pretendem acrescentar valor aos serviços prestados aos seu sócios e simpatizantes, sob a forma de melhor futebol e de mais vitórias e títulos. Qual é o valor que acrescentam os intermediários destes investimentos, sobretudo quando cobram quantias desproporcionadas em termos relativos e absolutos sem que disponham sequer de qualquer título de propriedade? Sem eles, os investimentos dos clubes não se realizariam? Os jogadores jogariam pior? As equipas praticariam pior futebol? Ninguém precisa de ser o Adam Smith para perceber que se trata de um atividade que se encontra do lado improdutivo da economia. Não basta admitir que se estes serviços têm preço é porque alguém lhes atribui valor. Esta é só mais uma forma de extrair valor a quem o produz, isto é, de extrair rendas. É mais uma das faces obscuras do futebol como indústria. É preciso perseguir o rasto deste dinheiro.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

O completo e absoluto nada

Ontem, no jogo contra o Rio Ave, aconteceram três golos e mais nada. Perante este não acontecimento, o que se pode dizer? Nada ou escrever sobre o nada, transformando-o em alguma coisa? Vi o jogo no habitual café da esquina. Lembro-me dos golos e de uma entrevista da Maria de Lurdes Modesto sobre a gastronomia tradicional portuguesa, que li na revista do Jornal de Notícias enquanto (não) via o jogo. Faz sentido uma crónica em jeito de entremeada em que a seguir a cada camada de Bruno Fernandes se acrescenta outra de Bacalhau à Braz, decorando-se o prato com duas azeitonas de Wendell e de Luiz Phellype? Mesmo que fizesse, seria sempre insossa. 

O Keizer tem aprendido e não é pouco. Contra equipas mais atacantes, engendrou um sistema em que o Borja faz alternadamente de terceiro central e de defesa esquerdo, conforme equipa tem ou não a bola. Contra equipas que jogam mais à defesa, deixam-se dois defesas centrais e a construção de jogo passa sobretudo por eles e pelo limpa-para-brisas do Gudelj. A bola é trocada entre os jogadores a dez à hora, até o Mathieu fazer um passe tenso para a esquerda ou recuar o Wendell para a receber e avançar com ela, desbloqueando-se o jogo ofensivo. Esta construção de jogo envolve tantos jogadores que os sobrantes estão condenados a morrer de solidão entre os adversários. Este modelo de jogo entedia os jogadores, entedia-nos a nós, espetadores, e chega a entediar qualquer equipa adversária que não tenha ingerido umas doses de ansiolíticos. 

O jogo iniciou-se sob estes augúrios, esperando-se assim mais uma noite longa. No entanto, depois de um canto a favor do Rio Ave, o Bruno Fernandes ganha a bola ao primeiro poste, sobrando para o Diaby a passar ao Luiz Phellype que desmarca o Wendell do lado esquerdo. O Wendell arranca com a bola e o Diaby, o Acuña e o Luiz Phellype partem à desfilada, parecendo mais uma turba depois de um arrastão na Costa da Caparica ou em Copacabana. O Wendell passa em profundidade para o Acuña tocar na bola e ainda a ajeitar melhor para o Luiz Phellype que tem todo o tempo do mundo para procurar o seu melhor pé e a encostar para a baliza, enquanto o guarda-redes permanecia de cócoras. Depois de doze minutos em que nada acontece, acontece o primeiro golo. Depois de mais de vinte minutos sem nada acontecer outra vez, o Bruno Fernandes rouba a bola ao Fábio Coentrão, centra-a para o Luiz Phellype a cabecear ao lado, aparecendo um central a destempo a abalroá-lo. “Penalty”, Bruno “Lampard” Fernandes a fazer a paradinha do costume, o guarda-redes a resistir à tentação de adivinhar o lado para onde se dirigiria a bola e a atirar-se tarde para o chão quando ela lhe foi rematada para o seu lado esquerdo. Mais um quarto de hora sem nada acontecer e as equipas vão para intervalo com o Sporting a ganhar por dois a zero. 

A segunda parte inicia-se sem nada acontecer e depois de mais oito minutos em que nada acontece, acontece o terceiro golo: o Acuña desmarca o Bruno Fernandes pelo lado esquerdo num lançamento lateral, que vai até à linha, avança para a área, levanta a cabeça, espera que o Wendell apareça na zona frontal para lhe passar a bola e este a enfiar na gaveta do lado direito da baliza. Depois, bem, depois não aconteceu nada até ao fim do jogo ou não aconteceu nada daquilo que nos leva ao futebol: remates, defesas, oportunidades de golo, enfim, emoção. Em cada canto a favor do Rio Ave, o Rúben Semedo ia à área contrária para abraçar o Coates. O Fábio Coentrão ia falando com os seus ex-colegas para averiguar da possibilidade de voltar. O Diaby deixava sistematicamente a bola para trás de forma a procurar dominá-la com o calcanhar. O Joavane Cabral revelava idêntica inconsequência mas com perfil técnico mais apurado. O Bruno Gaspar inconseguia todas as tentativas de contra-ataque. Entretanto, a equipa do Rio Ave mantinha-se impassível. Os jogadores trocavam a bola ao primeiro toque no meio-campo, nem atacando nem defendendo. Ao mais pequeno sinal de desequilíbrio da defesa do Sporting, atrasavam a bola para reiniciar o ataque, fazendo lembrar as pausas da nossa equipa de andebol para sair o Carneiro e entrar o Ruesga. O jogo concluiu-se com todo o “fair play”, sem que o árbitro mostrasse qualquer amarelo.

Este jogo fez-me lembrar um discurso do Eduardo Cabrita, Ministro da Administração Interna, que ouvi há uns tempos: depois de uma hora de vacuidades não me lembrava de rigorosamente nada. Estes jogos e esses discursos têm o objetivo de apagar a memória. Apagam a memória enquanto nos deixam vagamente entorpecidos e dispostos a defender a paz entre os homens. Não tenho dúvidas que o Dalai-lama irá utilizar a gravação deste jogo nos próximos “workshops” que realizar.

sábado, 6 de abril de 2019

Um dia infélix

Estava ganho. Eram favas contadas. A eliminatória estava no papo. Crónicas de uma morte anunciada foram previamente escritas. Estavam prontas a seguir para o prelo. Nem as fotografias de capa do dia seguinte faltavam. Eram de todos conhecidas. O enfado de ter que haver jogo deixava alguns descontentes. Perda de tempo, sem necessidade. Um jogo de risco? Nem para a polícia - sorriam alguns. Ao minuto cinquenta e oito, ou cinquenta e nove, de um jogo até aí sem golos (estranhamente o Sporting não estava a ser goleado, muito pelo contrário), um dos jornalistas que comentavam junto ao relvado, escutando-se, por momentos, os adeptos do Benfica no estádio, comenta enlevado: "apenas dois petardos, de resto só cânticos, e dos bons". No final o Benfica ganhou, como se impunha, dominou o jogo todo, como se sabia de antemão, e até poderia ter marcado mais. Se não aconteceu deveria ter acontecido. Ou então foi apenas um dia infélix. Deixem lá isso. São apenas cânticos, e dos bons. 

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Foi você que comparou o João Félix ao Bruno Fernandes?

Este era o jogo de época para o Sporting, afirmavam os jornalistas e comentadores em todo o lado. Para o Benfica era um jogo a feijões, depreendia-se desses comentários e dessas análises. Os títulos são mais do que muitos esta época e mais um menos um não fazia grande diferença. Há títulos todos os dias e em todos os jornais: a tática de Bruno Lage, a maior descoberta depois da prensa de Gutenberg, ou o menino Félix, um fenómeno que só tem paralelo num melro branco e num ovo de oitocentos gramas encontrados no Entroncamento, e milhões, muitos milhões de euros. A maioria dos portugueses sabe que não se consegue ultrapassar mil euros por mês quanto mais tantos e tantos milhões de euros em noventa minutos. 

O Keizer percebeu desde o início que não era possível ultrapassar tantos milhões de euros e preocupou-se em, pelo menos, não se deixar ultrapassar por eles, repetindo a tática que tão bons resultados tinha dado no último jogo contra o Braga. Com bola, a equipa jogou com três defesas – Coates, Mathieu e Borja -, permitindo que o meio-campo jogasse mais adiantado e sem referência na saída para o ataque e obrigando o Bruno Gaspar a atacar e a recuperar para fazer de defesa direito quando o Benfica atacava. Do lado esquerdo, o Acuña não tinha a responsabilidade de recuar da mesma forma, jogando como médio e extremo esquerdo. Com três defesas para dois avançados – Seferović e João Félix – e o meio-campo mais avançado, o Sporting pôde pressionar mais alto e sem sofrer calafrios nas transições ofensivas do adversário. Esta tática surpreendeu o Benfica nos primeiros vinte, vinte e cinco minutos, que, com os médios e defesas pressionados, não conseguia organizar o seu jogo e, em particular, os seus jogadores não dispunham nem de espaço nem de tempo para colocar a bola na frente, no Seferović, para construírem a partir daí. O Sporting carregou mas foi inconsequente, em especial quando o Gabriel enfiou uma biqueirada no calcanhar do Raphinha e nos deixou numa situação de três contra dois com a bola a ser conduzida pelo Bruno Fernandes na zona central, o que costuma ser meio golo. 

Dadas as dificuldades do Benfica em jogar, o árbitro diligentemente começou a ensarilhar o jogo. Uma falta aqui, outra acolá, um encosto que é falta para logo a seguir outro o não ser, um cartão amarelo agora e outro passado algum tempo à equipa contrária para compensar. Nos últimos minutos da primeira parte deixou-se de jogar futebol para se assistir a uma sinfonia desafinada de apitos e aos “moches” entre jogadores e o árbitro, com o Bruno Lage a assoprar ao ouvido do quarto árbitro. Para atingir o mais alto nível de disparate na escala de Mota, o árbitro resolveu mostrar um amarelo ao Gudlej num lance que nem falta foi. 

Na segunda parte, o Benfica pareceu entrar melhor, mas há Bruno Fernandes e quando há Bruno Fernandes não há mal que sempre dure. Arrancada pelo meio-campo fora até ser derrubado à entrada da área por uma entrada de carrinho por trás do Pizzi. A contragosto foi marcado o livre, embora o amarelo tenha ficado no bolso porque a falta não foi do Ristovski. Um livre daqueles na biqueira das botas do Bruno Fernandes é um “penalty”. O seu remate transformou a bola num Tomahawk que embateu na barra, com o Svilar a atirar-se para fazer que fazia alguma coisa. O Sporting ganhou moral e continuou a carregar. Sai o Bruno Gaspar e entra o Ilori, começando-se a antecipar uma defesa a três para o quarto de hora final, que se concretiza minutos depois com a saída do Borja e a entrada do Diaby. O jogo estava encanzinado e, nestas circunstâncias, só se resolve se o melhor jogador em campo o resolver. O melhor jogador em campo era o Bruno Fernandes e, portanto, só o Sporting podia ganhar aquele jogo. 

Quando se deslocava para o meio, o Bruno Fernandes estava sempre rodeado de dois ou três jogadores do Benfica. Até que, depois de uma pressão alta, a bola sobrou para o lado direito para o Bruno Fernandes que ficou com a possibilidade de jogar um contra um contra o Grimaldo. O um contra um do Bruno Fernandes transforma-se sempre num um contra zero, com o Grimaldo a procurar tapar-lhe o lado de fora, o do seu pé dominante, o direito. O Bruno Fernandes fez-lhe a vontade e passou-o por dentro, enfiando de seguida com o pé esquerdo um novo Tomahawk ao ângulo superior esquerdo da baliza, com o Svilar a atirar-se para fazer que fazia alguma coisa, sem que desta vez a trave o ajudasse. O Benfica reagiu de imediato e meteu o Taarabt, um rapaz que mal se mexia e que, depois de tocado por Bruno Lage, levantou-se e andou, enquanto o treinador continuou as suas tarefas de multiplicar os pães e os peixes, de curar leprosos e abrir estradas em macadame pelo meio dos mares. Enquanto o Taarabt organizava o jogo do Benfica, o Raphinha o Luiz Phellype e o Diaby ainda tiveram tempo para se atrapalharem mutuamente em duas jogadas, perdendo-se dois golos. 

Afinal, o jogo não era o jogo da época para o Sporting mas para o Benfica, tal a azia que se apoderou dos seus jogadores, treinador e presidente. Os jogadores desataram a correr atrás do árbitro, o Bruno Lage informou-nos que não se divertiu nada (pudera, ninguém se diverte quando perde), o Luís Filipe Vieira veio falar das arbitragens até ao final do campeonato, afirmando ao mesmo tempo que não estava a falar delas. Os comentários finais foram para nos desqualificar. O Benfica teve mais oportunidades de golo (?) e valeu-nos Bruno Fernandes. Espero que não se importem que joguemos com ele, dado que lhe pagamos o salário ao fim do mês. O Sporting é o Sporting de Bruno Fernandes, como o Ajax era o Ajax de Johan Cruijff, o Nápoles era o Nápoles de Maradona, o Real Madrid era o Real Madrid de Cristiano Ronaldo ou o Barcelona era (e ainda é) o Barcelona de Messi. Os génios são raros por definição. Quem os tem, não os desperdiça e coloca a equipa a jogar em função deles. O que não se compreende é que sendo o João Félix um génio, como todos afirmam, o Benfica não seja o Benfica de João Félix, prescindindo dele para entrar o Jonas com o jogo e a eliminatória por resolver.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

A geometria da vergonha

Semana passada em Barcelona, de visita à minha filha. Curso intensivo de modernismo e de cubismo enquanto se tropeça em japoneses, chineses e coreanos vestidos à ocidental, que se adoram a si próprios, tal a frequência dos retratos nos mais variados contextos. A geostratégia mundial pode-se ter alterado, com a Ásia a substituir a Europa, mas o domínio do simbólico continua a ser nosso. A geometria está em todo o lado: na arquitetura, nas artes plásticas e no futebol, e vai desde as catenárias da Sagrada Família à “parábola perfeita de Messi”, como qualifica o El Mundo o remate do primeiro golo do Barcelona contra o Espanhol. Em Portugal, o futebol não imita a arte e as parábolas estão remetidas a figuras de estilo. 

O jogo contra o Chaves inicia-se enquanto desço do Parque Güell para o bairro de Grácia, onde me esperam as habituais “patatas bravas”, “croquetas” e “hummus” para “compartir” regadas pelo Tempranillo ou Merlot que conseguir pagar. Do “WhatsApp” vão chegando as primeiras mensagens: “vinte e três minutos para ver uma jogada em condições”, “Mota a mostrar amarelo ao Gudlej numa falta igual à de um jogador do Chaves e por duas vezes a beneficiar o infrator”, “todas as semanas é a mesma coisa”. Chego ao bairro de Grácia ao intervalo e vejo o resumo da primeira parte. Embora continuemos a atravessar a nossa fase azul, o golo podia fazer parte de uma fase rosa que esperamos que lhe suceda: os passes entre o Ristovski, o Raphinha e o Bruno Fernandes formam um desenho perfeito que o escorregão do Luiz Phellype não conseguiu estragar, levando-o às lágrimas. 

“Surreal!”, grita o meu “WhatsApp”. Tínhamos acabado de nos deixar empatar quando estávamos a jogar contra dez, por expulsão de um jogador do Chaves. “O Bruno Fernandes é um fenómeno!”, grita de novo o meu “WhatsApp”, quando passámos para a frente. “É uma vergonha!”, grita o meu “WhatsApp”, mais uma vez. Não recebo mais nenhuma mensagem até ao final do jogo. Chego ao hotel e vejo o resumo integral do jogo. A expulsão do Ristovski é uma vergonha, a somar à de Setúbal. Tudo obedeceu a uma encenação: o VAR só pode interferir numa jogada ou a pedido do árbitro ou quando tem a certeza que este cometeu um erro manifesto, não havendo lugar a interpretações, subjetivas, por definição. O árbitro resolveu sancionar a interpretação do VAR, que constitui uma pura e simples mistificação, dado que só a expulsão lhe podia permitir reverter a sua decisão anterior de expulsar um jogador do Chaves por derrubar o Raphinha quando se isolava. Pelos vistos, o sistema habitual resolveu branquear mais esta vergonha. Foi a sola, como em Setúbal terá sido o vernáculo. A sola do Ristovski é diferente da sola dos jogadores do Chaves e dos restantes jogadores do campeonato nacional. 

A sola ou o vernáculo de um macedónio são um problema, na semana em que dois personagens desconhecidos – César Boaventura e Vítor Catão – nos entraram pelas nossas casas para nos fazer reviver um episódio do Duarte e Companhia. O Lúcifer ou o Átila dessa mítica série eram mais verosímeis, apesar de se tratar de uma representação. Não existe é agência de detetives e em vez de um Citroën 2CV vemos figurões a passear em carros de alta cilindrada com dono desconhecido, mesmo para o fisco. Sem estética nem geometria, o futebol português só nos envergonha como país e como povo.