domingo, 23 de outubro de 2022

Há qualquer coisa certa que não está errada

 

Tinha começado as hostilidades com uns camarões, lerpando de seguida um bife de atum acompanhado de arroz branco e uma cebolada. Um tinto do douro ainda por ali andava quando o jogo começou e se desenrolou no âmbito do rotinado: há qualquer coisa errada que não está certa. Amorim (mais uma vez) encenava o seu modelo ao ponto de confundir os adversários (tratar-se-ia do modelo ou do seu simulacro?) e os próprios jogadores que, fazendo jus à encenação, desperdiçaram inúmeras oportunidades de golo, aliás, como tinha acontecido na primeira parte do jogo com o Chaves, por exemplo. O Casa Pia mesmo participando do simulacro foi duas vezes à baliza adversária: um golo e uma bola no ferro foi o resultado. Ficou ainda uma expulsão em banho maria, sem VAR que lhe valesse.

Na segunda parte a intensidade dramática (afinal o Sporting perdia em casa – mais concretamente em meia-casa), tinha tudo para resvalar para o abismo ou para a mais inusitada glória. Por essa altura ainda andava ali por perto uma garrafa de tinto do Douro e alguns cigarros mal apagados quando Trincão enviou uma bola ao poste, já com Chico Lamba em campo. Por momentos pensei que o simulacro levasse a melhor, mas depois com a entrada de Paulinho tudo se precipitou. Com Paulinho na frente acontece um paradoxo espantoso: a sua presença parece um equívoco no modelo (ou na sua simulação/encenação), mas ao mesmo tempo funciona com uma (hipotética?) referência lá na frente. Isto confere ao jogo ou, se quisermos, confere ao modelo, outra imprevisibilidade, principalmente para quem defende, tornando a equipa do Sporting com menos um artista em campo (Trincão) muito mais incisiva e inquietante para o adversário, tanto que em poucos minutos o resultado ficou feito, com a contribuição decisiva do tal equívoco e do sempre imprevisível e aguerrido Nuno Santos (entre outros!). Se calhar há aqui qualquer coisa certa que não está errada... mas posso estar enganado. 

 

domingo, 16 de outubro de 2022

Há qualquer coisa errada que não está certa (II)

Não sou dado a pressentimentos, o esturro chega-me sempre na sua fase calcinada. Quando Matheus Nunes rumou ao sonho Wolverhampton Wanderers, um sonho que o próprio sonhou de véspera, já que tempos atrás se sonhava noutro olimpo, condescendi com a teoria da época previamente planeada, ainda o Jeremiah St. Juste não se lesionava cada vez que se levantava da cama para o pequeno-almoço.

Entretanto, Amorim, na sua versão economista das tardes da Júlia, encaminhava-nos para um ambiente de incoerências sem qualquer responsável, a não ser talvez um ente divino que manobra a vida do nosso clube com sapiência transcendental. Nestes casos acredito sempre na ilusão que me faz vestir a camisola preparando-me para a cerimónia.

O Sporting não se reforçou, sejamos honestos, nem que seja por um segundo. Saiu o Sarabia para entreter as idas à mercearia do Kylian Mbappé ou para colmatar as ausências de Neymar quando este está em campanha pelo Bolsonaro. Saiu o Palhinha que também veio a reboque do Braga (e nunca ninguém se queixou disso, caro Amorim); saiu o Tabata diretamente da feira da ladra em bom saldo, e o marroquino Feddal que ainda alguns devem recordar com saudade. O Jovane anda em convalescença espiritual em permanente aquecimento e o Slimani rumou ao paraíso das redes sociais, em bom francês.

As entradas foram permutas, rascunhadas para o modelo, percebi logo isso, já as conhecia do tempo da universidade - não esquecendo o Edwards que já cá estava, embora falando português por uma palhinha. Ninguém achou necessário incluir mais avançados, nem pinheiros, nem arbustos daqueles corredores que se costumam ver nos filmes de cowboys, capazes de fazer a vez do Paulinho quando este estiver ocupado entre linhas no banco de suplentes. E estava tudo planeado, cogitando-se mais um Pote de ouro no final do arco-íris.

Já muito foi escrito e talvez até falado, nas tascas, sobre a desmontagem da equipa do Sporting, mas sempre numa perspetiva extrínseca, isto é, do adversário, sem pensar na possibilidade da sua subversão a partir do interior e consequente decomposição em peças, mais ou menos coladas com a saliva de cada momento. Assiste-se muito a isso na vida de todos os dias. Pensei nisso enquanto via um documentário sobre o Gaudí e a sagrada família de Barcelona, ainda hoje por terminar.

O modelo (actual) é um simulacro do modelo, e como todos os simulacros, creio que o disse Baudrillard, não se trata de um seu sucedâneo, ou apenas de uma representação do original, mas da criação de uma ilusão, no limite da simplificação da simulação: fingir ter o que não se tem. Por isso todos acreditam que Amorim insiste, quando este encena, e, nesse sentido, assume-se como um criador de imagens que ultrapassam a esfera do futebol. Acredito que o simulacro até certo ponto precede o original.

Um bom exemplo disso são os primeiros dois jogos da liga dos campeões. Dizem-nos que resultaram porque o Sporting jogou contra equipas que tentaram assumir os jogos, libertando espaços, podendo assim surpreender com transições e trocas entre os jogadores, quando o que aconteceu foi funcionamento do simulacro em condições ótimas, permitindo finais assombrosos: por onde andará o rei Arthur Gomes após o admirável golo contra o Tottenham? Presumo que esteja a ser preparado para o modelo.

Qualquer alteração significativa ao simulacro, ou melhor, qualquer interferência na simulação, seja a forma como o adversário se dispõe, não tentando desmontar o modelo, mas simplesmente desrespeitando-o, como o fez a Santa Clara recentemente, torna o jogo do Sporting um pastiche (um pastiche do simulacro) arrastado, sobrevivendo de alguns rasgos individuais. Nos jogos contra o Marselha a derrocada do Sporting não foi mais que a ingerência do fator humano no jogo, muito comum em futebol ou noutras actividades cuja presença humana seja notória. Não foram (apenas) os erros individuais que possibilitaram o descalabro, mas o descalabro que pairava como uma sombra terrível, aguardando apenas que o acolhessem.

Não será por acaso que após estas recentes ingerências etéreas no modelo (Amorim não se afasta nem um milímetro do seu… simulacro), o jornal Record tenha publicado que o Sporting procura pelo menos três jogadores para o mercado de Inverno; ou que tenha vindo a público o resultado financeiro absolutamente histórico, com lucro de 13,6 milhões nas contas da SAD, apresentado recentemente. Os números aparecem sempre nestas ocasiões, embora por aqui pairem algumas nuvens sobre o Clube, nomeadamente sobre o futuro das modalidades.

Nota: deixo aqui a minha perplexidade relativamente às assistências em Alvalade, após o anúncio com grande pompa do record de vendas de Gamebox. Em quatro jogos para o campeonato, dois não chegaram aos 30.000 espectadores e outros dois por pouco ultrapassaram essa barreira. Grande parte dos detentores de gamebox pura e simplesmente não vão ao estádio, ou estão sempre de férias, em lugar incerto. Outra perplexidade, para além dos silêncios cada vez mais prolongados nos jogos em casa, é aquela bancada vazia atrás de uma das balizas. Resolvam-se.