Pode um juiz benfiquista julgar um caso que envolva o Benfica? É uma pergunta simples que remete para uma resposta também simples não sem que antes nos vejamos em palpos de aranha para a encontrar.
Um juiz é titular de um dos três órgão se soberania numa democracia plena: o poder judicial. Contrariamente aos outros dois – poder legislativo e poder executivo – estes titulares não são eleitos pelo povo, não se encontram submetidos ao escrutínio popular. Poder, muito poder, e escrutínio exclusivamente pelos pares. O poder (e a sua legitimidade) anda a par da responsabilidade e quanto maior o poder, maior a responsabilidade.
A nossa identidade é plural ou, melhor dizendo, dispomos de múltiplas identidades. Somos homens ou mulheres, casados ou solteiros, portugueses ou naturais de outro país, do norte ou do sul, do este ou do oeste, da cidade ou do campo, de um clube ou de outro. Somos tudo isto e somos o que fazemos. As identidades complementam-se. Têm um tempo e um espaço e, por isso, no seu tempo e no seu espaço uma não sobreleva outra. Quando uma se sobrepõe a todas as outras estamos mais próximos da barbárie, como nos explica Amartya Sen em “Identidade e Violência”.
O benfiquista Registo dispõe de uma página de Facebook. O benfiquista Registo expõe publicamente o seu benfiquismo e, como benfiquista fanático, escreve e partilha umas alarvidades sobre futebol, julgando adversários, árbitros e Rui Pinto. Calhando-lhe em sorteio julgar o processo "Football Leaks", o juiz Registo apagou das redes sociais o benfiquista Registo, como se dessa forma deixasse de ser também o benfiquista Registo. O juiz Registo pediu escusa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa. O juiz Registo entende que deve ser um tribunal superior a decidir se tem ou não condições para julgar o caso de Rui Pinto, “tendo em conta o que saiu na comunicação social”. O juiz Registo não desmentiu nada do que “saiu na comunicação social”.
Em teoria, nada impede que o juiz Registo julgue este caso. O juiz Registo é uma das suas identidades e o benfiquista Registo outra. Quem considera que está impedido de o julgar é o juiz Registo. Se considerasse que o benfiquista Registo é independente do juiz Registo, o juiz Registo não teria apagado o benfiquista Registo das redes sociais. Não, não precisa de ser um tribunal superior a decidir quando ele já decidiu. Não, não precisa de se justificar com o que “saiu na comunicação social”, quando justificou a si próprio a sua renúncia ao renunciar ao benfiquista Registo.
Pode um juiz benfiquista julgar um caso que envolva o Benfica? Pode, como pode um juiz sportinguista ou portista julgar casos que envolvam o Sporting ou o Porto. Ser de um clube é uma parte do que se é e essa parte não necessita de interferir com o resto do que se é também. O caso particular do juiz Registo é diferente. É o próprio juiz Registo que considera que o benfiquista Registo interfere com a sua função de fazer justiça. Mas o problema não é o juiz Registo; o problema são os assintomáticos.