segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Percebido?

Há treinadores com boas ideias. Há treinadores com más ideias. Há treinadores com ideias assim-assim. Há treinadores com as mais variadas proporções de ideias boas, más e assim-assim. Há ainda treinadores que não têm ideia nenhuma. Há uma enorme variedade de treinadores, para todos os gostos e feitios, e há o Silas, que não faz a mínima ideia. 

As (supostas) táticas vão variando em função de um objetivo que está sempre presente: sair a jogar pela zona central, embora sem se ter grande consciência do que fazer à bola em seguida. Este objetivo, esta obsessão, melhor dizendo, parece treinada sem consideração pelos adversários e a sua reação. Nos treinos pode-se recorrer aos pinos, mas, nos jogos, os pinos mexem-se, reagem, jogam também. A saída para o ataque começa invariavelmente num central que devagar, devagarinho passa a bola a outro, enquanto a pressão dos adversários sobre o jogador com bola e as supostas linhas de passe aumentam. Os laterais vão subindo e ao mesmo tempo, conforme a pressão aumenta, os médios baixam em apoio, trazendo consigo os médios adversários que procedem à respetiva marcação. O número de jogadores de uma e outra equipa no primeiro terço do terreno vai aumentando e, consequentemente, o espaço de circulação da bola com segurança vai diminuindo. Enquanto se vão atulhando jogadores na grande área e na sua proximidade, os avançados vão ficando mais distantes. O risco de perda de bola e de o adversário ficar numa situação privilegiada para marcar aumentam, aumentando a ansiedade dos jogadores até chegarem ao ponto de se quererem ver livres da bola e com poucas probabilidades de a colocarem nos avançados.

Jogo após jogo, com três centrais, com dois centrais e um médio a recuar para terceiro central, com dois centrais e um trinco, com dois centrais e um duplo pivô, a história repete-se. É provável que o Silas tenha visto jogos das equipa treinadas pelo Guardiola e gostasse que as suas jogassem da mesma forma. Mas não é Guardiola quem quer; e também não se pode ter uma equipa a jogar como as do Guardiola com os atuais jogadores do Sporting. Com eles, com o Borja, o Doumbia, o Ristovski, o Bolasie, por exemplo, mesmo o Guardiola não seria o Guardiola e a equipa não jogaria como jogam as equipas do Guardiola. Talvez não fosse má ideia começar a tentar sair a jogar de forma mais simples, pelas laterais, fazendo o que fazem todas as equipas, atraindo os adversários a um dos lados para com troca de bola rápida sair pelo lado contrário. No limite, no limite, sempre se pode sair com pontapés para a frente do guarda-redes, dando alguma utilidade ao Bolasie, por exemplo. Tudo é preferível ao mesmo (mau) filme visto e revisto todas as semanas. 

Contra o Rio Ave aconteceu tudo isto com a diferença em relação a outros adversários de os seus jogadores saberem trocar a bola entre si, não a perdendo por qualquer razão ou razão nenhuma como os do Sporting. Sem o Acuña, o Mathieu e o Vietto, porventura o Sporting terá jogado com uma das piores equipas das últimas décadas. Tentei encontrar uma equipa que se equiparasse. Procurei, procurei e não encontrei propriamente uma, embora tenha encontrado referências nos anos oitenta a algumas com o Vital a guarda-redes, o Duílio a central, o Valtinho a médio, o Lima a extremo ou o Peter Houtman a ponta-de-lança. Aconteceu também o costume: a expulsão de um jogador do Sporting, neste caso do Coates. Depois das duas faltas que vi e de no jornal “A Bola” ter lido o habitual comentador de arbitragem e ex-árbitro explicar que “Rúben Dias reagiu com frustração excessiva, correndo o risco de ver cartão vermelho direto”, num lance em que agride à descarada um adversário, porventura os dois amarelos ao Coates devem-se a um nível de frustração bastante insuficiente. 

Este jogo contra o Rio Ave não tem muito mais que se lhe diga e, para concluir, volto ao princípio e ao Silas e sua singularidade, recorrendo ao livro “O Que Fazer dos Estúpidos?”, de Maxime Rovere, filósofo e professor na Universidade do Rio de Janeiro, que li este fim-de-semana, para devido enquadramento da análise. Não fazer ideia é não dispor de consciência de si, confundindo a representação de si consigo mesmo. É pior do que não existir, é a ausência de consciência da sua não existência, é um jogo de espelhos em que o ser se toma pela sua projeção, pela sua imagem, como se fossem o mesmo ou uma só coisa. Nos outros, as ideias precedem o ser, o ser treinador. No Silas, as (supostas) ideias antecedem o ser, mas, sem ser, as ideias também não o podem ser, porque pressupõem a prévia existência do ser para serem (ideias) dele. Em síntese, o Silas precisava de ser treinador para que avaliássemos as suas ideias enquanto tal. 

Esta inconsciência de si mesmo não o afeta exclusivamente. Afeta-nos a todos que confundimos também a sua projeção com a sua (não) existência enquanto treinador. Esse erro de perspetiva, o de se confundir o sujeito com a sua imagem, leva-nos ao exercício de procurar explicar-lhe como deve fazer, como o que aqui desenvolvi. É energia perdida, pois uma imagem não muda, de nada valendo os sermões. É uma estupidez (o ato), não devendo ser confundido neste caso com um estúpido (o sujeito). Percebido? Se não, então está como eu relativamente ao Silas, o que não faz de mim mais inteligente do que ele.

6 comentários:

  1. Caro Rui,

    o enredo poderia ter o nome de "Crónica do Rei pasmado", com a minha vénia ao Ballester. Realmente, descobrir que nos campos deste país os pinos movem-se é algo capaz de deixar pasmado qualquer "Rei". Duvido é que assim o "casamento" alguma vez venha a ser consumado.

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  2. Um abraço, Rui. (Queira desculpar a omissão inicial.)

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    1. Caro Pedro,

      Há muito que não me lembrava deste livro do Ballester. Há alguns anos, li todos os que estavam publicados pela Caminho. Porventura, esse foi o que mais me divertiu.

      Ver uma mulher nua é, para o Silas, ver os pinos mexerem-se e as jogadas não decorrerem como o esquematizado nos "powerpoints" do curso de treinador.

      Um abraço

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    2. Gosto muito. Ri-me também com o "Filomeno, para meu pesar", história passada na Galiza. E li o Don Juan.

      Um abraço

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  3. SPORTING 2011-2012:
    Marcelo Boeck
    Onyewu
    Tiago Ilori
    Evaldo
    André Santo
    Bruno Pereirinha
    André Martins
    Stijn Schaars
    André Carrillo
    Valeri Bojinov
    Diego Rubio
    Que maravilha era a equipa...entre essa e a atual venha o diabo e escolha, não é preciso ir aos anos 80!!!

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    1. Caro João,

      Estive para relembrar algumas das equipas do Paulo Bento mas achei injusto. Os jogadores não eram grande coisa como aqui se vê, mas mesmo assim construíram-se equipas competitivas.

      Os jogadores da equipa atual não são brilhantes, mas o treinador e a falta de dinâmica da equipa fá-los parecer muito piores do que são verdadeiramente.

      SL

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