segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Salvos pelo Castaignos ou pelo Princípio da Incerteza de Heisenberg

Caros amigos (esta resulta da influência das crónicas do Nelson Rodrigues que ando a ler), no sábado, finalmente pude ver um jogo do Sporting do primeiro ao último minuto no Flávio. Na mesa e na cadeira do costume, à distância certa da televisão. Com os sportinguistas de sempre, cinco, contando comigo e com o dono do café, e contra todos os benfiquistas que ocupam o resto da sala e não se calam um segundo. No meu “habitat”, consegui ver o jogo como gosto de ver para vos puder relatar como deve ser.

O Peseiro escala uma equipa como qualquer um de nós o faria. Há um guarda-redes, quatro defesas, os mais altos jogam a centrais, e um ponta-de-lança, sendo os restantes distribuídos pelo campo de forma mais ou menos equilibrada espacialmente, três mais ou menos no meio, uns mais à frente e outros mais atrás, e dois mais ou menos nas laterais. Este equilíbrio territorial, que se baseia numa certa simetria longitudinal na disposição dos jogadores, é um bom princípio de jogo. É um bom princípio, mas o jogo tem mais que o princípio e, mesmo com todas as perdas de tempo dos jogadores do Feirense, sob o olhar complacente do árbitro, é necessário assegurar que tenha um bom meio e um bom fim, isto tudo durante noventa minutos.

Este bom princípio rendeu logo uma excelente jogada de ataque. O Bruno Fernandes desmarcou-se entre o central e o lateral do lado esquerdo, centrou atrasado, o Nani rematou de primeira contra as pernas de um defesa, a bola ressaltou para o lado onde apareceu o Acuna a fechar os olhos e a acertar com a bola numa perna do guarda-redes. Depois, bem, depois foram acontecendo coisas. Não sei descrever as coisas que foram acontecendo a não ser como coisas que são. O Battaglia pegava na bola e corria do meio para o lado direito até esbarrar em alguém e voltar para trás e passar a bola. O Acuna fazia o oposto, pegando na bola e correndo do meio para o lado esquerdo até esbarrar em alguém também e passar a bola. O desespero vai-se apoderando de um e de outro até que um dos centrais resolve iniciar a jogada de ataque, normalmente o Coates, enfiando um biqueirada para a frente ou passando a bola junto à linha para um dos laterais. O Nani e o Bruno Fernandes bem tentavam desmarcar-se para dentro ou para fora, mas a bola não lhes chegava, não lhes servindo de nada esbracejar. O Montero esforçava-se no famoso jogo entre linhas mas sem que a bola chegasse por uma vez para tabelar com um médio ou com um extremo.

Os jogadores do Feirense também não faziam nada que se visse. Demoraram a adaptar-se à nossa pressão alta um pouco caótica, não conseguindo sair com bola e limitando-se a umas biqueiradas que os centrais e o Battaglia inevitavelmente resolviam. Havia isto tudo e o Jéfferson que é um caso à parte. É irrelevante que à sua ferente esteja um jogador de carne e osso, um soldadinho de chumbo ou um jerrican, quando procura centrar a bola acerta sempre no adversário que está à sua frente.

No início da segunda parte, tudo piorou, se ainda era possível. Os jogadores do Feirense deixaram de se atrapalhar com a suposta pressão alta e passaram a dominar o jogo a toda a sela. Não criaram grande perigo porque não sabem mais e a nossa defesa também não dá abébias (o André Pinto está a revelar-se). Só que, simplesmente, deixámos de chegar à área contrária. Como é quase impossível marcar qualquer golo sem se chegar lá, o Peseiro fez o que costuma fazer e que é a única tática disponível neste momento: meteu o Jovane Cabral e tirou o Jéfferson. O acerto foi total, na entrada e na saída.

A jogar com onze e o Jovane Cabral a correr como se não houvesse amanhã, por contágio, os restantes jogadores desataram a correr também. O jogo ficou partido que é como o Battagalia mais gosta de jogar, mais de metade do relvado e meia equipa adversária ficam por sua conta. Os jogadores do Feirense deixaram de ter descanso e montamos-lhe definitivamente o cerco, passando à fase do tiro ao boneco com o Salin a encarnar no Caio Secco, guarda-redes do Feirense, e a parar todos os remates. Estava-se neste impasse quando o Peseiro, na sua cabeça, assumiu que só com um jogador que tivesse com a bola uma relação baseada no Princípio da Incerteza de Heisenberg é que seria possível ganhar o jogo. O Castaignos é o jogador que, no Mundo, mais dificuldades tem em determinar simultaneamente a posição e a velocidade da bola, às quais adiciona a tradicional dificuldade de escolha da extremidade do corpo mais adequada para a jogar.

A sua entrada foi decisiva. Bola metida em profundidade à procura da velocidade e da desmarcação do Raphinha, o defesa esquerdo corta de cabeça para o meio onde, à entrada da área, o Castaignos a recupera e a passa ao Raphinha definitivamente. O Raphinha domina-a e levanta a cabeça, percebendo que não tem a quem a passar, faz pedalada e meia e passa por fora o defesa e ganha a linha, toca de calcanhar para trás e simula que vai centrar, acabando por fazer uma cueca no defesa que apanha o Ristovski desmarcado e em grande aceleração. O Ristovski junto à linha de fundo não vai de modas e centra rasteiro de primeira para a entrada da pequena área onde aparecia o Castaignos a atrapalhar um defesa, a bola passa por ele e o Jovane Cabral ao segundo poste antecipa-se a um adversário e em esforço mete-a lá dentro. Chegados a este ponto percebe-se melhor a entrada do Castaignos: foi a sua incapacidade em determinar simultaneamente a posição e a velocidade da bola que permitiu, por um lado, atrapalhar os defesas e, por outro, a entrada convicta do Jovane Cabral. Esta incapacidade é reconhecida pelo próprio, como se viu na forma como deixou a bola para trás e entrou a toda a brida pela baliza dentro, não estorvando, assim, a possibilidade de finalização do seu colega.

O Jorge Jesus, supostamente, tinha uma ideia de jogo e era apegado a ela. A ideia era estúpida, como se viu pelos resultados, mas uma ideia é sempre uma ideia, quando, na cabeça, para além dela só se dispõe de um risco ao meio. Quanto ao Peseiro não se sabe se tem uma ideia de jogo, mas, se tem, não parece muito apegada a ela, porque nunca percebemos muito bem o que se está a passar em campo. A ideia de jogo é capaz de ser a ideia que cada jogador tem de si próprio e dos seus colegas. É uma ideia que se vai construindo ao longo do jogo. Pouco a pouco, os jogadores esperam entender-se, trocando ideias. É um “brainstorm” permanente. No final, com uma ideia, sem ideia nenhuma ou com tantas ideias quantas as cabeças, o resultado é o mesmo: uma hora de avanço concedida ao adversário e meia hora com o credo na boca. Sendo o resultado o mesmo e o ordenado infinitamente mais reduzido, podemos concluir, como qualquer economista, que estamos muito mais eficientes: o custo por golo marcado e por ponto conquistado reduziu-se e muito.

22 comentários:

  1. O Castaignos vai ser o novo Téo. Por enquanto a bola ainda passa por ele sem lhe tocar, mas quando começar a tocar nele (não é ele na bola), vais ver.....golos atrás de golos.

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    1. Meu caro,

      Há semelhanças, a trapalhice é parecida, mas o Téo tinha um pacto com o diabo. A bola vinha ter com ele mesmo nas situações mais improváveis.

      SL

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  2. Depreende-se então que vamos acabar com 78 pontos, a média dos últimos três anos, ou, quem sabe, chegar perto dos 86, que foram apenas recorde na história do Sporting (nem 80 se encontram por lá). Tudo isto com um ordenado infinitamente mais reduzido. Ainda bem que estes primeiros quatro jogos não deixaram dúvidas de que "o resultado é o mesmo".

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    1. Meu caro,

      O que interessa não é o número de pontos mas a diferença de pontos face aos rivais. Em matéria de "quase", o Jorge Jesus ao pé do Peseiro ainda tem de comer muita sopa. Em matéria de "quase", o Peseiro é imbatível.

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  3. Caro Rui,

    Depois de concordar com o elogio do Ruben Dias na semana anterior, não posso deixar de concordar com o elogio ao Castaignos esta semana. A fazer justiça a quem faz a diferença, mesmo sem saber como.

    Acho também que tocou no ponto essencial: a estratégia (ou a falta dela). Durante três anos tivemos o mestre da tática, que planeava guiões tão complicados que os jogadores ou não os percebiam ou não se libertavam deles. Agora parece que temos a mestria oposta: uma espécie de aposta no caos (ou no tradicional 'desenrascanso' Português). É assim na forma de montar a equipa, de fazer substituições, mas também de gerir o plantel e de nos posicionar no mercado. Caos. Já vimos que é mais barato, até ver é igualmente eficaz. Mas as contas da eficiência terão de ser feitas no final...

    SL

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    1. Caro João,

      É esse o ponto: "Durante três anos tivemos o mestre da tática, que planeava guiões tão complicados que os jogadores ou não os percebiam ou não se libertavam deles". Vamos ver o que dá a aposta no acaso.

      SL

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. O rapaz deu jeito. Pelo menos chateou o calmeirão do Feirense que até aí nem tinha sujado os calções com o Montero.
    Entre um pino pequeno e um pino grande, o grande tem mais área para a bola ressaltar.

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    1. Meu caro,

      Um avançado tem de ser grande. Ou é grande ou é o Liedson (que era grande à sua maneira).

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  6. Bem vistas as coisas, este texto é tão deprimente. Se fosse afinado, ia já ali cantar uma morna ( o fado já deu o que tinha a dar).

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    1. Meu caro,

      Deve cantar uma morna em homenagem ao Jovane Cabral com ou sem texto.

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    2. A ideia era essa, estimado Rui Monteiro: uma homenagem cabo-verdiana ao Jovane e ao Nani e, já agora, ao Raphinha, que não é daquelas bandas euro-africanas, mas, como se viu sábado, engana muito bem.

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    3. Meu caro,

      Para mim, o Raphinha naturalizava-se em três dias como faz o Benfica com os cubanos no triplo salto e ia à selecção. É aproveitar agora que um dia destes os brasileiros acordam.

      SL

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  7. Meus caros,

    Não se esqueçam que os jogadores ainda estão em recuperação do stress auditivo...para além do intelectual. Ou seja, passar do guião feito ao detalhe e que ninguém entendia por mais que o estudasse!
    Quanto ao auditivo... imaginem-se a viver 3 anos junto ao aeroporto e depois passar para um local onde reina o silêncio. É como estão os jogadores neste momento, passaram da gritaria permanente a partir do banco para o silêncio com alguns diálogos quando são chamados.

    Depois, para mim que sou engº químico, é um mimo ler uma crónica que inclui o princípio da Incerteza!! Impagável!!

    SL

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    1. Caro Vítor Borges,

      "imaginem-se a viver 3 anos junto ao aeroporto e depois passar para um local onde reina o silêncio". Tenho inveja de não ter escrito isto.

      Obrigado e SL

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  8. Excelente a "compreensão" do desempenho de Castaignos à luz do Princípio de Incerteza de Heisenberg". Aquela ideia da consciência que o próprio tem das suas especificidades voando para dentro da baliza para evitar estorvar os colegas, permite-nos olhar com outros olhos para o Castaignos do nosso descontentamento. Não sei se Peseiro falou sobre isto na sua conferência de imprensa.
    Genial a explicação dos limites impostos a Jefferson pela suas obsessãO de acertar sempre no opositor que era suposto contornar, seja ele "um jogador de carne e osso, um soldadinho de chumbo ou um jerrican".
    Estamos todos mais felizes com o nosso Sporting depois do ciclo de infortuna durante o qual o Grande Mestre da Táctica nos pensa ter conduzido à antecâmara da glória. Mais que não seja porque o caos gerado pelo “brainstorm permanente" conjugado com um sábio recurso, contado ao segundo, "ao Alcochete-que-joga-e-não-fala" é uma boa terapia para o tédio e para o bocejo que se tinham instalado em Alvalade. Aborrecemo-nos quase o mesmo mas bocejamos muito menos.
    Estamos todos com vontade de dizer que sabe bem gastar tão pouco já que não é agradável dizermos que nos sabe bem jogar tão pouco.

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  9. O último parágrafo do comentário na sua "versão final":

    Estamos todos com vontade de dizer que sabe bem gastar tão pouco já que não é agradável dizermos que nos sabe bem jogar tão pouco, nem o pudor nos permite afirmar nos sabe bem jogar tanto.

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    1. Caro JG,

      Com o Jorge Jesus aborrecíamo-nos, como diz. Mas era um aborrecimento calculado pelo treinador. Não há pior aborrecimento do que aquele que é planeado para o ser. Este, do Peseiro, é puro e simples aborrecimento. Entre os dois tipos de aborrecimento, prefiro o segundo, tanto mais que sabemos que a qualquer momento vai entrar o Jovane Cabral e o jogo se resolve.

      SL

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  10. Castaignos vai explodir lá para o outono. Joga muito bem sem bola, o que poucos sabem.
    Para a historia fica: 4 jogos , 10pontos. E mais nada!

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    1. Meu caro,

      O Castaignos não é pior que o Postiga e mesmo o Postiga marcou golos. Estou como o Peseiro: o Castaignos vai marcar golos.

      Estou consigo no final. Dez pontos já cá cantam. Estamos em primeiros. Estamos à frente do Porto. Estamos com os mesmos pontos do Benfica e já fomos à luz. Venha o próximo que o Jovane trata-lhes da saúde.

      SL

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  11. Concordo consigo caro Rui Monteiro. Não há qualquer tipo de comparação.

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    1. Caro JG,

      Uma monotonia planeada é uma monotonia que sabemos que nuca acaba. A monotonia do Peseiro é o resultado do acaso. Assim como o acaso determina essa monotonia também pode determinar o contrário. A esperança dá outra motivação aos adeptos: isto tem tudo para melhorar.

      SL

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