terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Ver futebol no café como quem vai ao cinema

Ontem era dia de ir ao Theatro Circo, ao cinema, ver “Folhas Caídas”, realizado por Aki Kaurismäki, finlandês que passa metade do ano em Viana do Castelo. O ritual de ir ao cinema não é, não pode ser o mesmo de ir ver a bola no Flávio [se tivesse pescoço para isso, nunca deixaria de ir ao cinema sem uma camisola de gola alta preta]. Chego à bilheteira e o filme está esgotado. Tento mostrar-me consternado, não me é permitida outra atitude [sim, ou melhor, não, não procuro parecer o tipo de pessoa que vai para os cafés ver a bola e escreve umas patacoadas sobre o que vê ou não vê, tanto faz]. Para que não restem dúvidas sobre a minha consternação, compro bilhetes para o filme da próxima segunda-feira [“Os Delinquentes”, de Rodrigo Moreno].

A atitude de quem se prepara para ir ao cinema não é a mesma de quem se prepara para ir ver a bola. Entro no Flávio ainda a tempo de ver o Trincão marcar mais um golo, depois do Edwards se embrulhar com a bola e dois adversários. Ainda com a atitude de quem vai ao cinema, procuro encontrar uma interpretação, uma explicação razoável para o que acabo de assistir. Não é simples compreender esta súbita vontade do Trincão de fazer o gosto ao pé jogo após jogo e mais do que uma vez por jogo, como ontem. Talvez Trincão tenha deixado de ter medo de existir, de encontrar a sua razão de ser, o sentido último de cada pontapé na bola, que carecia sempre de sentido, quanto mais de direção.

Com cinco a zero ao intervalo, não era de esperar uma segunda parte empolgante. Admitia até a possibilidade de julgamento no Tribunal Penal Internacional se ultrapassássemos o nosso melhor resultados dos últimos cinquenta anos. Esperava-me [esperava-nos] quarenta e cinco minutos de tédio. Recebo uma primeira mensagem “WathsApp” com notícias dos agricultores em França. Recebo outra com uma pequena chalaça: “É preciso acabar com a corrupção mesmo que se tenha de pagar algum por fora!”. Recebo a seguinte com um “link” para um guia metodológico para avaliação de políticas públicas. A meio de um jogo, uma mensagem destas de um sportinguista constituiu um pedido de socorro, na esperança de que alguém possa falar com o Gyökeres. Ou porque falaram ou porque não avisaram o Geny Catamo que o jogo tinha acabado, os rapazes do Casa Pia levaram ainda mais três [golos] de castigo.


[O meu amigo Pedro Almeida faz hoje anos, sessenta anos. Éramos amigos em Viseu e fomos, com um ano de diferença, estudar para Lisboa: eu agronomia, no Instituto Superior de Agronomia; ele economia, na Universidade Nova de Lisboa. Há muito que não nos (re)vemos. É, sempre foi, uma das mentes mais irrequietas que conheci e conheci muitas assim. Queria ser tudo, quase tudo na vida. Adorava escrever. Fazíamos noitadas a escrever à desgarrada. A partir de uma palavra ao acaso no dicionário, escrevíamos uma frase e depois outra e outra ainda até construirmos um texto. É a ele e a essa paixão inconsequente pela escrita que dedico esta postada, com um grande abraço pelo seu aniversário!]      

5 comentários:

  1. Surpreendentemente desconcertante! Saca o coelho da cartola sem cinema nem sequer jogo...

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    1. Meu caro,
      Sem si, não sei o que isto seria. O jogo não teve história. Quando se ganha por 8 a 0, a partir de certa altura deixa-se de prestar atenção. Começamos a ter pena do adversário e, portanto, há pouco, muito pouco a dizer.
      Abraço,
      RM

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    2. Isso da pena é mesmo verdade! Quase equipa nenhuma merece aquilo, principalmente aquela q até é bem simpática.
      Mas dá algum prazer construir uma lista de equipas que merecem aquele tratamento ...

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    3. O amigo fez um intervalo (e dos valentes) ... agora o arranque vai devagarinho ...!

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    4. Obrigado pelo incentivo. Vamos ver se há vontade que dure.
      Abraço,
      RM

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