segunda-feira, 22 de março de 2021

What a Wonderful World

Ontem, quando me sentei para escrever qualquer coisa sobre o Sporting x Guimarães, deu-me uma branca, nada me ocorreu. A felicidade não propicia estados de alma criativos. Lembrei-me de começar pelo Palhinha, considerado culpado por não pretender ser condenado sem antes lhe ter sido atribuída a culpa, após trânsito em julgado [a utilização da expressão do trânsito em julgado é bem reveladora desta falta de imaginação]. Lembrei-me da vontade do Paulo Sérgio em chegar a roupa ao pelo ao Sérgio Conceição, que esbracejava, vociferava, mas sempre com adequado distanciamento social, não fosse dar para o torto. Lembrei-me do árbitro desse Portimonense x Porto a deslocar-se ao túnel para pedir, pedir encarecidamente aos jogadores para voltar, pois ainda havia jogo para jogar. Não, nada do que me passou pela cabeça parecia ter grande interesse, depois de ter visto o que vi. 

Pensei em falar do jogo, diretamente, sem mais delongas. O jogo teve interesse. Nos últimos jogos, o Sporting parecia esgotado, sem ideias. A entrada do Daniel Bragança deixou o Tiago Tomás e o Pedro Gonçalves mais na frente e reforçou o meio-campo. Houve bola, muito mais bola no meio-campo adversário. Atrás, com o Gonçalo Inácio a fazer de Coates, a defesa não tremeu e iam-se alternando momentos de circulação da bola com passes mais diretos, verticais, em profundidade. As duas primeiras oportunidades desperdiçadas pelo Pedro Gonçalves resultaram de dois passes fenomenais do Gonçalo Inácio. Aconteceu o primeiro golo, resultado de uma jogada coletiva, que começa do lado direito, com o Porro, vem ao centro, para o Palhinha, vai à esquerda, ao Nuno Mendes, e concluiu-se com um passe perfeito do Pedro Gonçalves para a não menos perfeita desmarcação do Tiago Tomás. Bola fora, afirma o videoárbitro, perentório. Quando o Porro inicia a jogada, parece que a bola saiu pela lateral, parece. Também parece que a bola veio atrás, ao Palhinha, interrompendo-se o ataque, que só depois é retomado pelo lado contrário. Estou convencido que noutras paragens se haveria de encontrar uma narrativa, uma subalínea, uma interpretação de um documento em inglês da FIFA ou da UEFA que permitisse concluir se não o contrário pelo menos o conveniente: na dúvida o videoárbitro deixa seguir. 

Escrevo estas linhas e apetece-me apagar tudo, mas é necessário chegar ao fim. Continuo, continuo a escrever sobre o jogo. Não foi à primeira, foi à segunda. Livre, bola bombeada pelo João Mário para a área, desvio de cabeça do Tiago Tomás, novo desvio de cabeça do Palhinha e Gonçalo Inácio a encostar de cabeça também para a baliza. Fora-de-jogo, assinala o fiscal de linha e confirma o árbitro. Começam as repetições e verifica-se que não há fora-de-jogo nenhum, embora os comentadores procurem agora encontrar uma falta. O árbitro confirma o golo e os jogadores festejam três dias depois. Vai-se para o intervalo. No regresso, tudo parece ter mudado. O Daniel Bragança não parece o mesmo e o Tiago Tomás e o Pedro Gonçalves estão mais sozinhos na frente. O Sporting recua e mete trancas à porta, que é uma outra forma de dizer que o Palhinha entra em modo “take no prisoners”. O jogo chega ao fim sem que o Guimarães crie mais uma oportunidade de golo para amostra.. 

Era preciso escrever até ao fim, custasse o que custasse, para que pudesse escrever o que verdadeiramente tinha de ser escrito. O jogo acaba e vê-se Dário Essugo, um menino de dezasseis anos, a chorar, rapidamente confortado pelos seus colegas. Enviam-me por WhatsApp fotografia do Dário Essugo ainda mais menino abraçado ao João Mário, o mesmo João Mário que tinha substituído neste jogo. Veio-me uma lágrima ao canto do olho, por ele, pelo menino, mas pelo seu pai também. O Dia do Pai, o meu ou do pai do Dário Essugo, pode ser antes ou depois, quando um homem quiser, desde que se aprenda a chorar, a envelhecer envolvido numa doce melancolia. E o Rúben Amorim remata: “treinou bem, foi convocado, era o único médio que tínhamos no banco e era de um médio que precisávamos para substituir o João Mário”. Ouvia-o e era como se ouvisse Louis Armstrong: “I hear babies crying, I watch them grow/They'll learn much more, than I'll never know/And I think to myself, what a wonderful world/Yes, I think to myself, what a wonderful world”.

[Acabei de ler “Porque é que Marx Tinha Razão”, de Terry Eagleton. O autor procura desmontar uma a uma as principais críticas a Karl Marx. Desmonta o argumento do marxismo enquanto utopia, explicando, com humor, que não se espera do socialismo o fim dos acidentes de trânsito ou do mau gosto. Tenho algumas dúvidas mas uma coisa eu sei: se fosse o Rúben Amorim a escrever O Capital tenho a certeza que ou se evitaria a moda masculina das calças à boca de sino e dos sapatos altos atamancados dos anos sessenta e setenta ou, se não se evitasse, não a consideraríamos pirosa como a consideramos] 

10 comentários:

  1. Caro Rui,
    Faltam-me palavras para elogiar a profundidade (ou profundeza) dos seus textos. Não tentarei aconselhá-lo mas, talvez, com uma maior simplicidade houvesse mais gente a perceber os seus textos!
    Eu creio que percebi até porque coincide com a minha leitura.
    Vi o jogo pela TV (RTPi) mas o narrador (Gonçalo Ventura neste caso) também andava aos papéis para justificar o injustificável.
    Se a bola saíu o assistente deveria ter assinalado o facto! Depois é uma nova jogada mesmo se ela se tenha desenrolado em vários tempos todos eles anunciadores de uma nova jogada (não por acaso, muito bem jogada).
    Um dia depois vi (no computador) o Real Sociedad x Barça e algo parecido também passou! Um golo que o VAR anulou por alguns nanometros e que seria o sexto como se tal fosse a busca da verdade desportiva!
    Mesmo tendo problemas mais existencias a ver com a pandemia começo a desinteressar-me do futebol! Já nem sei imaginar qual será a próxima agora que o Benfica está na lista dos três!
    Um abraço com esperança malgré tout!
    Ferverosas SL

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    1. Caro Aboim Serôdio,

      Obrigado pelas suas palavras. Escrever é um exercício de narcisismo, de vaidade, mais do que outra coisa qualquer. Ter a pretensão de ser lido pressupõe elevada autoestima. A verdade é que, mesmo intermitente, o blogue vai tendo muitas visualizações e visitantes, muito para além do que esperava e do que esperar, quando não se encontra associado a outras redes sociais, como o Twitter ou o Facebook. Aqui só vem quem se lembra de vir ou por divulgação de outros.

      Quanto ao jogo, os rapazes aguentaram-se bem, muito bem mesmo. Se ganharmos o campeonato, esta saga dá um filme. O golo anulado é de ir às lágrimas. Ou há outra imagem absolutamente conclusiva ou a imagem da Sporttv é inconclusiva e o fiscal de linha está em muito melhores condições de ajuizar o lance e não assinalou fora. Estamos então em presença de uma decisão do VAR na base do parece-me. Há uns tempos, o Porto marcou um golo ao Belenenses, após uma falta não assinalada, mas logo alguém nos veio explicar que a jogada não continuou nos mesmo termos, tendo recuado a bola. Neste lance, o Porro para a dado momento e atrasa a bola, seguindo-se a jogada pelo lado contrário. Dizer que é a mesma jogada ou não é mais um exercício de interpretação, de parece-me. Enfim, como sabemos o que sabemos, não é difícil imaginar que um golo destes não fosse anulado ao Porto ou ao Benfica. O parece não funciona contra eles.

      Por fim, tivemos o miúdo a portar-se como um valente, num jogo difícil com resultado incerto. Foi a cereja em cima do bolo, associada à conferência de imprensa final do Rúben Amorim. No tal filme, esta história do miúdo é de baba e ranho.

      SL

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  2. Caro Rui Monteiro:
    Para mim, os jogos do SCP só acabam quando publica as suas crónicas do jogo.
    Quando o SCP ganha, só depois de as ler é que consigo alcançar a grandeza do feito e entender a virtude da vitória.
    Quando o SCP perde, só então digiro a azia e consigo voltar a sorrir.
    É assim que os seus escritos funcionam para mim.
    Enquanto não escreve, não consigo dar por encerrado o jogo do SCP.
    Bem haja.

    José Carlos

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    1. Caro José Carlos,

      Obrigado, muito obrigado mesmo. Às vezes precisamos de ler coisas destas. O princípio é esse para mim e para si: os textos têm de ser úteis para encerrar os jogos na nossa cabeça.

      SL

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  3. “I hear babies crying, I watch them grow/They'll learn much more, than I'll never know, mas eu é que sou convocado p’a Seleção”. Deve ter sido +- isto que o Neto cantarolou enquanto olhava para o G. Inácio:))

    Um abraço, SL, Miguel

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    1. Caro Miguel,

      A situação é simplesmente genial. O suplente é convocado para a Seleção enquanto o titular nem para a Seleção Sub-21 é convocado. A malta da FPF ainda não está a compreender o que se está a passar, não somos só nós, os sportinguistas.

      Abraço

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  4. Tarde mas ainda a tempo.
    Boa crónica na linha que nos habituou e que trás ao blog muita gente.
    No jogo o importante foi o miúdo Dário , esteve 15 minutos em campo e não levou amarelo, como o Palhinha no Boavista. Estes miudos já nascem ensinados!
    De Palhinha vou para o Paulinho. Só sabia marcar no Braga? 2x0 de caras.
    As arbitragens agora tem muito por onde errar nos jogos do Sporting, se anulam o golo do Tiago vem o de Inácio, se o VAR desse razão aos padres entrava outro, nem que fosse do Dário. Os comentandeiros da sportv morriam em bloco de ataque do coração.

    SL

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    1. Caro João,

      Vem sempre a tempo.

      Demos uma novo passo na evolução da equipa. O Palhinha e o Coates têm um tal cuidado a cortar bolas que começa a ser difícil encontra pretexto para lhes mostrar amarelo. O Dário Essugo está fazer uma curso acelerado com eles.

      Estou numa fase em que tudo o que diz o Rúben Amorim está certo. Se ele diz que o Paulinho é o melhor avançado de Portugal e arredores eu acredito. Aliás, se dissesse qualquer do género do Sporar acreditava também.

      SL

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  5. Caro Rui,

    Já passam uns dias desde o jogo, mas ainda espero vir a tempo de dizer que gostei da sua crónica, mesmo que se queixe de falta de inspiração.

    O jogo foi menos enrolado que os anteriores, mas não menos emocionante. Se deixa qualquer Sportinguista à beira de um ataque de nervos (esperamos sempre um qualquer ressalto ou algo de parecido), o que dizer do efeito que tem nos comentadores, que esperam e desesperam por um empate que seja ?

    Em qualquer caso, obrigado pela referência musical. Uma excelente escolha para a acompanhar as "férias" de Páscoa dos Sportinguistas felizes e a pensar que o jogo em Moreira de Cónegos é o mais importante do Mundo! (Já agora, sugiro também a brilhante versão do Nick Cave e Shane MacGowan, já que as férias são longas...)

    SL

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    1. Caro João,

      Obrigado pela sugestão. Fui ouvir que não conhecia.

      Os jogos do Sporting têm duas partes emocionantes mas com duas emoções diversas. Temos a parte "quando é que marcamos um golo", temos a parte "quando é que isto acaba". Depois da emoção vem a parte do divertimento: ouvir os comentadores.

      SL

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