segunda-feira, 8 de março de 2021

Dezanove segundos

[92 min e 40 s] Adán recolhe a bola e lança-a com toda a força para Jovane, que roda, flete para o meio, encara um adversário, roda para a esquerda e mete-a mais à frente no Nuno Santos, enquanto Coates, o defesa mais recuado, começa a correr e, no momento do passe do Jovane, já o tinha ultrapassado; [92 min e 49 s] Nuno Santos recebe a bola e avança a passo e Matheus Reis desata a correr como se não houvesse amanhã para dar uma linha de passe entre o lateral e o central, fazendo hesitar o primeiro e fixando o segundo; [92 min e 53 s] com essa manobra, de diversão, Nuno Santos chega próximo da esquina da grande área, Coates à entrada da pequena área e João Mário um pouco mais à direita, ao segundo poste; [92 min e 54 s] Nuno Santos centra largo para João Mário receber a bola e a dominar; [92 min e 57 s] João Mário centra tenso para a entrada da pequena área; [92 min e 59 s] Coates enfia uma cabeçada na bola e assim a enfia na baliza do Santa Clara. 

Voltando atrás, ao início do jogo. O Sporting começa mal e é o Santa Clara que chega à frente primeiro e procura condicionar a nossa saída de bola ou, quando não o consegue, recua em bloco e defende com todos. Nós, bem, nós começámos sem grande intensidade, no modo habitual de deixar cansar o adversário, de lhe oferecer o primeiro milho. Até que, após pressão alta, Palhinha recupera a bola e passa-a ao João Mário, que a mete em Tabata, que descobre um espaço impossível por onde ela passa entre os defesas, encontrando o Pedro Gonçalves em condições de a rematar de primeira, cruzado, para o primeiro golo. Esperava-se um jogo como o do Portimonense: mais uns minutos de pressão sobre a defesa e o segundo golo para se fechar o jogo. Nada, nada de nada, nem mais um remate durante a primeira parte. 

Inicia-se a segunda parte e, em alternativa, espera-se um jogo como contra o Paços de Ferreira: a abrir, um pouco mais de intensidade e o segundo golo ainda antes dos sessenta minutos. Nada, nada outra vez. O Santa Clara toma conta do jogo e o Sporting vai controlando mas sem bola. O Tiago Tomás está perdido, algures, e o Tabata e o Pedro Gonçalves tentam, mas cada tiro, cada melro. Os laterais não sobem ou se sobem não têm apoio. O Rúben Amorim tenta mudar: entra o Matheus Reis primeiro, saindo o Nuno Mendes, e depois, entram o Nuno Santos e o Bragança, saindo o Tabata e o Tiago Tomás. Percebe-se a intenção, ter a bola, trocá-la, deixar o adversário sem ela, tranquilizar a equipa, acalmar ainda mais o jogo. Mas o Santa Clara está com estrelinha e, após um ressalto nas pernas do Feddal, marca o golo do empate, no primeiro remate que se visse, quando faltam cinco minutos para o jogo acabar.

Voltando ao início, ao outro início, aos dezanove segundos, que vão da bola na mão do Adán à cabeçada do Coates. Após um contra-ataque do Santa Clara, o Sporting tem poucos, muito poucos jogadores na frente, encontrando-se a maioria atrás da linha da bola e longe da baliza. O adversário está confortável, à espera, tendo ficado sete jogadores na defesa. Não houve uma precipitação e, sim, houve circunstâncias para precipitações ao virar da esquina: Jovane podia ter insistido até perder a bola ou ter de a atrasar, Nuno Santos podia ter metido na frente, na área, quando não havia ninguém para disputar a bola. No tudo ou nada, quando o jogo se encaminhava para o fim, os jogadores suspenderam o tempo, esperaram o momento e quando o momento aconteceu não foi por acaso que havia tantos jogadores na área ou próximo dela quantos os adversários e o Coates estava no sítio certo, após correr cerca de setenta metros. 

Estrelinha? Sim. O Sporting jogou pouco, marcou e confiou na defesa, na sua capacidade de não conceder oportunidades. Talvez seja desgaste, descompressão, baixa de forma de alguns jogadores, falta de alternativas, sem o Paulinho e o Porro. Houve estrelinha, de facto, há sempre estrelinha quando se ganha no último fôlego, mas nada aconteceu por acaso no segundo golo. “Enquanto o árbitro não apita, o jogo não acaba”, disse o Coates, simples assim. Se [digo e repito se] ganharmos este campeonato temos histórias para mais vinte anos de insucessos. Nas nossas memórias ficarão para sempre estas vitórias nos últimos instantes e o Coates, um herói improvável, um género de Capitão Flint às avessas, que partilha o saque com os seus colegas, que o partilha connosco também.

[Inadvertidamente ou para corrigir a bravata do “levam cinco ou seis” da primeira mão da Taça de Portugal, o Sérgio Conceição prestou um enorme serviço ao benfiquismo desesperado. O Sporting de Braga é a equipa que melhor joga ou, traduzindo, é o melhor Benfica que se arranjou esta época. Parecendo deslegitimar a narrativa do Rúben Amorim, esta qualificação mais não faz do que a confirmar: só com o Paulo Futre é que seríamos candidatos ao título]  

12 comentários:

  1. Eu também não gosto, mas acaba por ser compreensível esta dificuldade em encarar o primeiro jogo após jornada europeia, sobretudo depois de termos conquistado a Champions em pleno Dragão. Não sejamos tão duros com os rapazes...

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    1. Caro Jorge Solano,

      Tem toda a razão. Depois de ganhar a Champions, jogar contra o Santa Clara não anima ninguém e ainda anima menos quando se sabe que, se for preciso, o Coates resolve.

      SL

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  2. Estrelinha? Então o Porto, em Barcelos, que marcou um golo às três tabelas e outro um grande frango, o que foi?
    Estrelinha era o Sporting estar a ganhar 2/1 e o Santa Clara no ultimo minuto enviar uma bola ao poste com a baliza toda aberta. E se o Coates enviasse a bola ao poste, era azar?
    O Sporting quando sofreu o empate não deixou jogar mais o Santa Clara e caiu-lhe em cima. Ou será que vai ser proibido ao Sporting marcar golos depois dos 90 minutos?
    Já não sei não. Então o Rúben Amorim para o Zé Pereira estava legal no Braga e agora está ilegal no Sporting.
    Isto do sistema a funcionar,dá para parafrasear o Pimenta:o que é hoje mentira, amanhã será verdade.

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  3. Já agora, será que o Coates vai ser castigado por fraude como o Rúben Amorim? Ele foi inscrito como defesa e já marcou 6 golos como avançado. Vamos ver o que o digno conselho de disciplina vai dizer. Será que vai haver processo? Como diz o brasileiro, sei não.

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    1. Meu caro,

      Para mim, quem teve estrelinha foi o Santa Clara. No único remate que se visse, depois de uma carambola com as pernas do Feddal à mistura, marcou. Depois do golo do Santa Clara, o Coates ainda fez o favor de explicar duas vezes antes o que iria acontecer. Não foi por falta de aviso.

      Quanto ao processo ao Ruben Amorim, não se pode dizer muito. As instituições do futebol nunca param de nos surpreender. Como é que não se lembraram do mesmo quando ele era treinador do Braga?

      SL

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  4. Caro Rui Monteiro : cronometragem incrível. Também vi essa jogada assim. De repente lembrei-me do Blow up de Antonioni aquela partida virtual de tenis, há uma "raquetada" e todos seguem o trajeto da dita cuja...
    OS caras do Santa Clara esperavam um centro de Nuno para a área,para a molhada , ficaram pregados ao relvado. Coates nunca fez um golo tão fácil. João Mário acariciou a menina como só ele sabe e fez um passe de açucar. Uma obra de arte, merecia um quadro.
    SL

    jOÃO bALAIA

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    1. Caro João,

      Grande referência ao "Blow-up" e ao Antononi. O centro ao segundo poste tira a bola da visão dos jogadores do Santa Clara. É uma jogada repetida pelo Sporting, normalmente com o Porro a aparecer daquele lado. É uma jogada perfeita em que o controlo do tempo foi perfeito.

      SL

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  5. Caro Rui,

    Foram dezanove deliciosos segundos. Obrigado por recordar a todos que foi um grande golo, fruto de trabalho, razão e confiança, num momento em que era tão fácil só ter coração. Para aprendiz de treinador não está nada mau.

    Quanto à sua nota final, já nem sei o que pensar do que o Sérgio Conceição vai dizendo. Jogo após jogo parece cada vez mais perdido e o pior para eles (melhor para nós) é que parece levar a equipa a reboque. Esperemos que continuem a encontrar muitas equipas fortes como o Braga pela frente, para irem perdendo mais e mais pontos, e quando não puder ser que apanhem equipas fracas como o Sporting, para perderem ainda mais.

    SL

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    1. Caro João,

      De tudo se falou deste jogo menos desta jogada [ou se se falou foi para a desvalorizar como se tivesse começado e acabado na cabeça do Coates]. Foi uma jogada de manual, uma jogada perfeita, resultado de movimentação coletiva e, sim, da determinação do Coates, que contrariamente ao que se disse não foi para ponta de lança.

      O Sérgio Conceição como outros não consegue compreender o óbvio: nem sempre se ganha e o jogo para ser jogo só tem interesse se assim for [ou então não é jogo].

      SL

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  6. Dezanove segundo que permitiram atravessar a totalidade do território e levar a boa nova às balizas do Santa Clara. Brilhante ensaio que poderia ser utilizado em seminários destinados à formação de treinadores e comentadores em geral. Imagino mesmo um debate sobre o "Controlo do espaço e do tempo em situações marcadas pela urgência extrema".
    Imagino os rácios espaço/tempo que se podiam ir construindo à medida que a bola circulava entre Adan e a mona -que não será Lisa - do Coates.
    Eu fico maravilhado por este simples post - a simplicidade anda por aqui muito bem emparelhadas com o brilhantismo graças à leveza e acutilância da pena do Rui Monteiro - ter mostrado que o Jovane, afinal, nos escassos minutos que tinha para utilizar neste jogo teve uma participação,digamos assim, nuclear no percurso que foi do nosso conformismo à nossa euforia.
    É que lendo e relendo os comentadores e os jornalistas que escreveram sobre o jogo, ao rapaz de Cabo Verde era apenas creditado um falhanço impossível a menos de um metro da baliza. Foi ele, afinal, chegado quase no fim do jogo -vindo de um dos dez graozinhos di terra qui Deus espálhou na mei di mar,com passagem por Alcochete - quem fez a bola chegar ao Nuno Santos para que depois fossemos todos intensamente felizes.
    A história deve ser rigorosa e não há nada como a memória para evitar o esquecimento como lembrava o Kundera a propósito daquela mania de outros tempos de refotografar as fotografias.

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    1. Caro JG,

      Grande comentário. Aprecio especialmente o "Controlo do espaço e do tempo em situações marcadas pela urgência extrema".

      A movimentação do Jovane foi absolutamente decisiva. Primeiro, veio atrás buscar a bola (seria mais simples ficar na frente, na molhada, à espera que lhe chegasse). Depois, a movimentação para o meio foi o que permitiu abrir o espaço na esquerda onde ficaram o Nuno Santos e o Metheus Reis. Vamos admitir que não vinha para o meio mas para a esquerda, onde havia mais espaço. Se assim fosse, o adversário ter-se-ia concentrados nessa lado e deixaria de haver espaço para progredir. Por fim, a parte que lhe coube foi fundamental para permitir que o Coates subisse.

      Já não tem tanto que ver com o Joavane mas com o Nuno Santos e o João Mário. Se o Nuno Santos centra para a molhada, o Coates estava atrás dos defesas. Como centrou largo, quando o João Mário a centrou o Coates já estava à frente dos centrais.

      SL

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    2. Fico contente por ter gostado do comentário,caro Rui Monteiro. O Jovane é um caso de estudo na equipa do Sporting. Depois do Marquês talvez haja tempo para analisar friamente a sua importância na equipa - num contexto de subutilizacao cuja lógica me escapa totalmente - antes talvez de ser exportado.
      Eu referi a importância da participação do Jovane no lance decisivo e no espírito que se instalou nos últimos minutos porque me pareceu decisivo. O Rui acabou de desenhar no terreno do jogo o roteiro dessa influência e eu não seria capaz de fazer melhor. Faz-me muita impressão a forma como os adeptos o esquecem rapidamente e fico pasmado quando o colocam, junto com o Plata, como casos evidentes de -jogadores a necessitar de reabilitação psicológica.
      Depois de Jovane o Nuno Santos fez aquilo que normalmente o Nuno Mendes também faz: colocou a bola ao segundo poste a solicitar a entrada de um jogador para a assistência que muitas vezes se revela fatal para quem nos defronta. Trabalho de casa com o dedo de Rúben Amorim e dos seus adjuntos já que estes comportamentos estão muito bem interiorizado pelos jogadores. Desta vez calhou ao João Mário mas habitualmente são o Porro e o Pedro Gonçalves que por ali aparecem. No Sporting são quase sempre muito longos os caminhos mais curtos para a nossa felicidade desportiva. Quem sabe se estas diagonais dos Nunos não são o último capítulo da chegada ao Marquês, vinte anos depois.

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