Ontem, contra o Guimarães, qualquer resultado servia. Se perdêssemos, um colega meu de trabalho, que é do Porto, iria estar muito mais bem-disposto hoje, facilitando a resolução de um problema comum. Se empatássemos, não faríamos pior do que o Porto ou o Benfica. Se ganhássemos, ainda melhor. Se ganhássemos durante os noventa minutos, então faríamos o pleno e o “post” habitual ficaria muito facilitado. Há muito tempo que não me encontrava tão descomprometido para ver jogar o Sporting, assistindo simplesmente a uma partida de futebol enquanto manifestação desportiva e cultural.
O estado de espírito era de tal forma que não me aborreci nada por assistir a uma primeira parte que mais parecia uma partida de xadrez. Avançava um peão de um lado e, logo a seguir, avançava outro do outro lado para bloquear o seu avanço. Cada peça deslocava-se à vez. A velocidade de jogo era digna de um Karpov vs Kasparov mas em “slow motion”. O William Carvalho continuou com a cabeça de quem joga a seis a jogar a oito e, portanto, quando passava não se desmarcava, não saindo do sítio nem fazendo com que a equipa saísse do sítio também. Nãos saíam os nossos e não saíam os deles. Às tantas, um defesa deles chegou a pedir ao Bas Dost para mandar o Coentrão centrar, dado que estava a ficar com formigueiro nas pernas de estar tanto tempo de pé sem se mexer.
Sem tempo a perder, o Jorge Jesus decidiu começar a segunda parte a jogar tudo por tudo, metendo o Montero. Se estávamos a jogar parados com onze não havia nenhuma razão para o não fazermos com dez com idêntico resultado ou falta dele. Sem jogar há dois meses e em plena pré-época, o nosso acabrunhado avançado, que nunca primou pela intensidade que empresta ao jogo, apresenta uma desenvoltura física que também não faria corar de vergonha o Karpov ou o Kasparov. Depois veio o azar e a sorte ao mesmo tempo. O Bas Dost, lesionado, teve de sair e entrou o Doumbia. Ter um jogador da Costa do Marfim que não percebe o francês do Jorge Jesus ajuda. Desatou a correr como se não houvesse amanhã, desmarcando-se e esticando o jogo e, com isso, obrigando os centrais a correr atrás dele. Para seguir o exemplo ou porque estava frio, os restantes colegas desataram a jogar mais depressa, com o próprio Battaglia a deixar de estar parado atrás à espera de um contra-ataque e a tentar entrar no jogo e a chegar-se mais à frente no seu jeito de quem não tem jeito. Percebendo que podia jogar com um médio mais ofensivo, o Jorge Jesus tirou-o e meteu o Bruno César do lado direito.
Com a equipa a correr e a pressionar e o Doumbia obcecado com a baliza, o Guimarães deixou de conseguir sair com bola e de avançar a defesa. Com as nossas duas torres, de nada valia meter a bola comprida nos avançados. O cerco estava finalmente montando, só faltando a estocada final. Era preciso razão e coração ao mesmo tempo, isto é, era preciso não despejar bolas à maluca e aproveitar aqueles momentos em que o adversário parece tremer e a equipa acredita que vai marcar. Quando se acredita que se vai marcar está-se mais próximo de marcar e quando se começa a descrer na capacidade de segurar o adversário mais próximo se está de sofrer. Essa inteligência emocional está disponível às carradas no Coentrão e no Mathieu, que parecem saber sempre o momento certo para lançarem as investidas que fazem acreditar a equipa e adeptos.
O Doumbia falhou a primeira oportunidade na cara do guarda-redes. O Coentrão centrou comprido e apareceu ao segundo poste o Bruno César a rematar ao poste. O Acuña à meia-volta ia marcando o golo de uma vida. À quarta, em vez de marcar um livre com o “tiki-taka” do costume, o William Carvalho, por impulso e de forma completamente impensada, meteu a bola rapidamente no Acuña que acelerou e centrou tenso para o Mathieu marcar da mesma forma e com mesma certeza que converteu os “penalties” do fim-de-semana passado, começando a festejar ainda antes de rematar. Os últimos dez minutos foram dignos de uma equipa que quer ser campeã e sabe gerir um resultado, contrariamente ao demonstrado no jogo contra o Setúbal no Bonfim, continuando a pressionar a saída de bola do Guimarães e controlando o jogo com bola no meio-campo adversário.
Quando acabou o jogo, percebi que o meu descomprometimento de início de jogo se tinha transformado numa pilha de nervos e, depois, em entusiamo. Ganhámos em noventa minutos, que não chegaram para o Porto fazer o mesmo e foram curtos para o Benfica empatar. Só quando cheguei a casa é que caí em mim e percebi que hoje ia ter um dia de trabalho chato, muito chato. Talvez convença o meu colega a adiar a conversa para a próxima quinta-feira, depois do primeiro jogo da meia-final da Taça de Portugal. Pode ser que nessa altura esteja mais calmo ou, melhor ainda, que fique tão doente que nem ao trabalho apareça.
Belíssima crónica. Curiosamente também foi assim que comecei a ver o jogo e a tentar entreter-me. Mas os minutos foram passando e o nervoso miudinho veio ao de cima, como sempre. Merecemos a vitória, sem qualquer dúvida. MVP - Mathieu, bem secundado por Coentrão e logo a seguir pr Acuña.
ResponderEliminarVenha o Estoril e segurem lá a bancada porque a onda verde vai lá estar.
Somos mais sportinguistas do que queremos ser ou, pelo menos, parecer. É um mecanismo de autodefesa. O problema é quando começa o jogo. Nessa altura, voltamos à doença que não nos larga.
EliminarSL
Caro Rui,
ResponderEliminarAgora já percebo o porquê do Doumbia não jogar: torna tudo demasiado rápido e imprevisível, obrigando a malta a virar-se para a baliza em passo de corrida. Não faz parte da ideia de jogo. Mas lá teve que ser.
Temo que assim seja até ao fim: meio caminho andado para um pacemaker: eis o Sporting.
Um abraço
Caro Gabriel,
EliminarO Doumbia trás uma ideia nova e revolucionária: jogar à bola a correr. É um ideia perigosíssima e subversiva que coloca em causa o nosso líder.
Um abraço
Muito bom texto, como habitualmente. Inteligência e ironia quanto baste. Pois é a entrada de Doumbia foi mesmo o momento chave do jogo. Para quem só avalia resultados, essa entrada traduziu-se no falhanço do costa-marfinense frente a Douglas. A desmarcação a solicitar o passe de William na profundidade e a excelente defesa de Douglas, que até ficou com o pé alvejado/salvador para obras, não existiram. Sem Doumbia não teríamos ganho e com Doumbia, regularmente, ganharíamos mais vezes ou melhor empataríamos menos vezes. O problema como o Rui refere está na língua. Para o bem e para o mal Doumbia e Jesus não se entendem. Desta vez como o avançado teve que entrar o Sporting e todos nós beneficiou imenso com essa falta de comunicação. Mas, ao longo da época, tem sido um desperdício monumental.
ResponderEliminarCaro JG,
EliminarO Doumbia tem algumas dificuldades de relacionamento com a bola. Mas como não pára quieto acaba por mexer com o jogo e com a equipa. Não percebo a razão de não jogar e não entrar mais vezes. É que se o Bas Dost se lesionar, como se lesionou, só sobra este. Ninguém se iluda com o Monteiro.
SL