quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Xadrez em “slow motion” e um costa-marfinense que não compreende o francês do seu treinador

Ontem, contra o Guimarães, qualquer resultado servia. Se perdêssemos, um colega meu de trabalho, que é do Porto, iria estar muito mais bem-disposto hoje, facilitando a resolução de um problema comum. Se empatássemos, não faríamos pior do que o Porto ou o Benfica. Se ganhássemos, ainda melhor. Se ganhássemos durante os noventa minutos, então faríamos o pleno e o “post” habitual ficaria muito facilitado. Há muito tempo que não me encontrava tão descomprometido para ver jogar o Sporting, assistindo simplesmente a uma partida de futebol enquanto manifestação desportiva e cultural.

O estado de espírito era de tal forma que não me aborreci nada por assistir a uma primeira parte que mais parecia uma partida de xadrez. Avançava um peão de um lado e, logo a seguir, avançava outro do outro lado para bloquear o seu avanço. Cada peça deslocava-se à vez. A velocidade de jogo era digna de um Karpov vs Kasparov mas em “slow motion”. O William Carvalho continuou com a cabeça de quem joga a seis a jogar a oito e, portanto, quando passava não se desmarcava, não saindo do sítio nem fazendo com que a equipa saísse do sítio também. Nãos saíam os nossos e não saíam os deles. Às tantas, um defesa deles chegou a pedir ao Bas Dost para mandar o Coentrão centrar, dado que estava a ficar com formigueiro nas pernas de estar tanto tempo de pé sem se mexer.

Sem tempo a perder, o Jorge Jesus decidiu começar a segunda parte a jogar tudo por tudo, metendo o Montero. Se estávamos a jogar parados com onze não havia nenhuma razão para o não fazermos com dez com idêntico resultado ou falta dele. Sem jogar há dois meses e em plena pré-época, o nosso acabrunhado avançado, que nunca primou pela intensidade que empresta ao jogo, apresenta uma desenvoltura física que também não faria corar de vergonha o Karpov ou o Kasparov. Depois veio o azar e a sorte ao mesmo tempo. O Bas Dost, lesionado, teve de sair e entrou o Doumbia. Ter um jogador da Costa do Marfim que não percebe o francês do Jorge Jesus ajuda. Desatou a correr como se não houvesse amanhã, desmarcando-se e esticando o jogo e, com isso, obrigando os centrais a correr atrás dele. Para seguir o exemplo ou porque estava frio, os restantes colegas desataram a jogar mais depressa, com o próprio Battaglia a deixar de estar parado atrás à espera de um contra-ataque e a tentar entrar no jogo e a chegar-se mais à frente no seu jeito de quem não tem jeito. Percebendo que podia jogar com um médio mais ofensivo, o Jorge Jesus tirou-o e meteu o Bruno César do lado direito.

Com a equipa a correr e a pressionar e o Doumbia obcecado com a baliza, o Guimarães deixou de conseguir sair com bola e de avançar a defesa. Com as nossas duas torres, de nada valia meter a bola comprida nos avançados. O cerco estava finalmente montando, só faltando a estocada final. Era preciso razão e coração ao mesmo tempo, isto é, era preciso não despejar bolas à maluca e aproveitar aqueles momentos em que o adversário parece tremer e a equipa acredita que vai marcar. Quando se acredita que se vai marcar está-se mais próximo de marcar e quando se começa a descrer na capacidade de segurar o adversário mais próximo se está de sofrer. Essa inteligência emocional está disponível às carradas no Coentrão e no Mathieu, que parecem saber sempre o momento certo para lançarem as investidas que fazem acreditar a equipa e adeptos.

O Doumbia falhou a primeira oportunidade na cara do guarda-redes. O Coentrão centrou comprido e apareceu ao segundo poste o Bruno César a rematar ao poste. O Acuña à meia-volta ia marcando o golo de uma vida. À quarta, em vez de marcar um livre com o “tiki-taka” do costume, o William Carvalho, por impulso e de forma completamente impensada, meteu a bola rapidamente no Acuña que acelerou e centrou tenso para o Mathieu marcar da mesma forma e com mesma certeza que converteu os “penalties” do fim-de-semana passado, começando a festejar ainda antes de rematar. Os últimos dez minutos foram dignos de uma equipa que quer ser campeã e sabe gerir um resultado, contrariamente ao demonstrado no jogo contra o Setúbal no Bonfim, continuando a pressionar a saída de bola do Guimarães e controlando o jogo com bola no meio-campo adversário.

Quando acabou o jogo, percebi que o meu descomprometimento de início de jogo se tinha transformado numa pilha de nervos e, depois, em entusiamo. Ganhámos em noventa minutos, que não chegaram para o Porto fazer o mesmo e foram curtos para o Benfica empatar. Só quando cheguei a casa é que caí em mim e percebi que hoje ia ter um dia de trabalho chato, muito chato. Talvez convença o meu colega a adiar a conversa para a próxima quinta-feira, depois do primeiro jogo da meia-final da Taça de Portugal. Pode ser que nessa altura esteja mais calmo ou, melhor ainda, que fique tão doente que nem ao trabalho apareça.

6 comentários:

  1. Belíssima crónica. Curiosamente também foi assim que comecei a ver o jogo e a tentar entreter-me. Mas os minutos foram passando e o nervoso miudinho veio ao de cima, como sempre. Merecemos a vitória, sem qualquer dúvida. MVP - Mathieu, bem secundado por Coentrão e logo a seguir pr Acuña.
    Venha o Estoril e segurem lá a bancada porque a onda verde vai lá estar.

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    1. Somos mais sportinguistas do que queremos ser ou, pelo menos, parecer. É um mecanismo de autodefesa. O problema é quando começa o jogo. Nessa altura, voltamos à doença que não nos larga.

      SL

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  2. Caro Rui,

    Agora já percebo o porquê do Doumbia não jogar: torna tudo demasiado rápido e imprevisível, obrigando a malta a virar-se para a baliza em passo de corrida. Não faz parte da ideia de jogo. Mas lá teve que ser.

    Temo que assim seja até ao fim: meio caminho andado para um pacemaker: eis o Sporting.

    Um abraço

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    1. Caro Gabriel,

      O Doumbia trás uma ideia nova e revolucionária: jogar à bola a correr. É um ideia perigosíssima e subversiva que coloca em causa o nosso líder.

      Um abraço

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  3. Muito bom texto, como habitualmente. Inteligência e ironia quanto baste. Pois é a entrada de Doumbia foi mesmo o momento chave do jogo. Para quem só avalia resultados, essa entrada traduziu-se no falhanço do costa-marfinense frente a Douglas. A desmarcação a solicitar o passe de William na profundidade e a excelente defesa de Douglas, que até ficou com o pé alvejado/salvador para obras, não existiram. Sem Doumbia não teríamos ganho e com Doumbia, regularmente, ganharíamos mais vezes ou melhor empataríamos menos vezes. O problema como o Rui refere está na língua. Para o bem e para o mal Doumbia e Jesus não se entendem. Desta vez como o avançado teve que entrar o Sporting e todos nós beneficiou imenso com essa falta de comunicação. Mas, ao longo da época, tem sido um desperdício monumental.

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    1. Caro JG,

      O Doumbia tem algumas dificuldades de relacionamento com a bola. Mas como não pára quieto acaba por mexer com o jogo e com a equipa. Não percebo a razão de não jogar e não entrar mais vezes. É que se o Bas Dost se lesionar, como se lesionou, só sobra este. Ninguém se iluda com o Monteiro.

      SL

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