terça-feira, 18 de junho de 2019

A economia política das transferências

Sempre procurei ensinar que as empresas como qualquer outro tipo de organização não têm se não um objetivo: satisfazer as necessidades atuais e potenciais dos seus clientes ou utentes. O lucro ou os resultados não são um fim em si mesmos, são uma pré-condição da existência e uma forma de medir a consecução desse objetivo maior. Não se sobrevive a acumular resultados líquidos negativos e quanto mais e melhor se satisfazem as necessidades mais lucrativas se tornam as atividades económicas. O que importa, sempre, é a função social de uma empresa ou de uma organização, isto é, o contributo para a sociedade no seu conjunto. Evidentemente, esta definição ou este entendimento não é meu, resultando de reflexão de Peter Drucker, que, aliás, passou uma parte importante da sua vida ao estudo das instituições sem fins lucrativos. 

Não me acompanha exclusivamente Peter Drucker. Citando o insuspeito economista Papa Bento XVI, na sua encíclica “Caridade na Verdade”, o lucro não é um fim em si mesmo. O lucro tem que ser legítimo e legitimado do ponto de vista social. Isto é, o lucro é um instrumento para o desenvolvimento, assumido numa perspetiva humanista como o desenvolvimento de todos e de cada um. Desse ponto de vista, devem existir múltiplos modelos jurídicos e económicos de empresas que permitam acabar com a separação, que cada vez tem menos sentido, entre as que visam o lucro e as que o não visam. Não se está a falar de terceiro sector. Está-se a constatar uma ampla e complexa realidade, que envolve o público e o privado e que não exclui o lucro, antes o considera como instrumento para realizar finalidades humanas e sociais.

Infelizmente, o Mundo não funciona assim. A transposição do axioma da maximização do lucro das empresas da síntese neoclássica para a realidade veio legitimar todas as práticas assentes no objetivo de criação de valor para os acionistas. Não nos espanta que as empresas comprem as suas próprias ações ou distribuam dividendos generosos pelos acionistas enquanto aumenta a sua alavancagem. O objetivo deixou de ser o que devia e passou a ser uma outra coisa qualquer. Se há lucro e acionistas bem remunerados pelo capital investido, o objetivo está cumprido e os meios pouco importam. 

Um clube de futebol serve para constituir equipas e disputar campeonatos, oferecendo aos seus sócios e adeptos espetáculos desportivos. Este é o seu objetivo e o que determina a função social que o legitima. Vender e comprar jogadores é instrumental, serve o propósito de constituir melhores e mais competitivas equipas que possam proporcionar melhores espetáculos e ganhar mais títulos. Hoje, vender e comprar jogadores transformou-se num fim em si mesmo. Os jogos e os títulos só servem para os valorizar. Os valores das transferências sobem ano após ano e o recorde de um ano serve o simples propósito de sinalizar este “mercado” quanto à referência a ultrapassar no ano seguinte. Existe, cada vez mais, uma desproporção entre estes valores e as expetativas de ganhos dos clubes de futebol na realização da sua função social. Constituiu-se um esquema de Ponzi que durará enquanto a circulação de dinheiro o permitir e não se inverterem as expetativas sobre o crescimento do valor dos jogadores. 

O fetichismo da mercadoria de Karl Marx assume novos contornos. A mercadoria, enquanto entidade, despareceu e o dinheiro transformou-se na própria mercadoria. O dinheiro deixou de ser uma forma de facilitar a troca. Não existe relação entre o dinheiro, a produção de mercadoria e a realização de dinheiro, num ciclo mais ou menos virtuoso que permite a sua autorreprodução. O dinheiro gera dinheiro e tão só. 

Os adeptos passaram a festejar transferências como quem festeja golos, vitórias e títulos. Continuando a armar-me em culto, o que nos diz Gilles Lipovetsky é que não são as marcas que procuram dar resposta às identidades, são as próprias pessoas que precisam das marcas para construírem as suas identidades, não as conseguindo construir por si próprias. A nossa marca, o nosso clube, somos nós, seja no que for. O nosso clube devia servir para nos identificar enquanto adepto ou sócio. Serve cada vez menos. Serve para nos dispensar de dispor de identidades em cada uma das nossas outras dimensões. Ser do Sporting, do Benfica ou do Porto, dispensa-nos de ser mais o que quer que seja. É a era do vazio.

33 comentários:

  1. Um vénia ao rei desta merda.

    melhor texto de 2019 meu caro.

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    1. Meu caro,

      Muito obrigado!

      Com referências destas ainda me transforma no João Miguel Tavares do próximo 10 de junho.

      Um abraço

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  2. Um dos textos mais profundos que li sobre as consequências do futebol moderno.

    Substituiram-se identidades nacionais e de comunidade por clubes. E instituições desportivas criadas para dinamizar comunidades e levar valores próprios passaram a ser fábricas de produzir $ independente dos resultados sociais que isso tenha.

    É o sonho molhado do globalismo

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    1. Caro Diogo Marques,

      A versão negativa da globalização, o globalismo, como lhe chama, associa-se ao futebol de facto. Primeiro, pela perda de identidade em nome de um identidade maior que ninguém sabe o que é. O futebol gera marcas globais com as quais nos vamos identificando sem se estabelecer qualquer relação afetiva que resulte da nossa relação com os outros e, sobretudo, com aqueles que constituem a comunidade onde vivemos. Está presente pela financeirização da atividade. Os ativos vão inchando sem qualquer relação com a atividade propriamente dita. O tal dinheiro que gera dinheiro que caracteriza muita desta nova fase da globalização.

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  3. Brilhante.
    Estou para ver quem será o Bernie Madoff do futebol !

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    1. Caro Francis,

      Muito obrigado!

      Deve ser o super-agente. Aquele que vende o Ronaldo porque sem ele ninguém teria criado o Ronaldo nem haveria nenhuma clube que soubesse da sua existência e das suas qualidades. Não tem nenhuma utilidade social, mas ganha dinheiro.

      SL

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  4. Mais uma vez, mais do mesmo!

    Obrigado!

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    1. Meu caro,

      Eu é que agradeço. Escrevemos para sermos lidos e apreciados.

      SL

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  5. Mais um texto do meu caro Rui Monteiro que me deixou "bouche bée" expressão que não sei traduzir em português mas que resumiria como sendo um texto sobre o qual não sei o que dizer!

    Sempre a partir do smartphone (por doença prolongada do meu computador de mesa) acordei com duas notícias que não me impedirão de dormir e que não sei se têm algo a ver com o texto deste postal: uma era sobre o Michel Platini a outra sobre o João Félix. Abri as páginas do As, da Marca e do Mundo Deportivo e pouco diziam sobre a super transferência que o TJ das 20:00 da RTPi deu como confirmada. A mim não me aquece nem me arrefece mas os meus parcos conhecimentos de futebol não me ajudam a imaginar o encaixe do jovem portento no futebol supra defensivo do Atlético de Madrid. O Cholo Simeone sabê-lo-á sem dúvida e eu acreditarei quando tiver de acreditar. Nem sequer sei se JM é o "empresario" do JF mas li que 12 M (seis zeros)serão para ele.

    SL

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    1. Caro Aboím Serôdio,

      Embora as pessoas não se confundam, as circunstâncias sim. Há muito mais entre Platini e João Félix do que pode parecer.

      SL

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    2. Caro Rui,
      Obrigado por não ter posto totalmente de parte a minha interpretação arrojada do seu texto acima da média. Eu não passo dum comentador de sofá que praticou desporto em tempos idos. Hoje foi-me apresentado um produto que aconselho vivamente a comentadores como eu. Trata-se de um desodorizante com cheiro a suor para que eu dê a impressão de ter terminado uma sessão dura de treino! Espero que a mosquitada que ataca esta região de Espanha seja igualmente sensível sobretudo à noite. Não vou revelar a marca para que não me confundam com um jornalista criador de "fake news" na ordem do 120 Milhafres.
      Abraço com SL

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  6. Que texto do caraças!
    NFA

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  7. A era do vazio, como lhe chama, e bem, também é a era da mudança.

    Por vezes é preciso, ou o vazio, ou o caos, para gerar a revolta interior que leva a novos ciclos, e a novas vivências.
    Este distribuir de pão e circo terá um fim, como qualquer Coliseu.

    Quem sabe precisamos de uma era da simplicidade.

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    1. Meu caro,

      Parece uma excelente era. Andar dias e dias a falar de um miúdo e de milhões é uma forma de nos infantilizarem. É preciso ser adulto.

      SL

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  8. Para jm serão 30 milhões. Depois, quando vierem jogadores inflacionados que os lampiões irão comprar o jm irá beneficiar de mais algumas generosas comissões e assim irá o caldo em provas.

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    1. Meu caro,

      Este modelo só sobrevive com sucessiva valorização de ativos, gerando-se uma bolha como noutro sector de atividade qualquer. O dinheiro vai rodando, os ativos vão-se valorizando, a sua venda gera mais dinheiro que permite mais uma rodada, que permite nova valorização. No fim, se houver um crise, não existe nada no balanço dos clubes. Ganha quem ganhar o seu entretanto e o colocar a salvo.

      SL

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  9. Brilhante, caro Rui. Acrescentaria apenas que existe um elemento que apoia a passagem de paradigma que refere: A necessidade de o ser humano, desprovido de considerar que só pode atingir a diferença com os outros seres vivos pela identidade procura a catarse no grupo. O futebol enquanto desporto e convivio tinha essa identidade dos valores da amizade, do convivio, do desporto. Daí voce ainda encontrar uma tasca longíqua onde pessoas de diversos clubes podem conviver. Perdemos essa batalha com a derrota dos ideias da solidariedade, da ajuda mutua, da tentativa de nivelar melhor a sociedade. Os erros do autoritarismo e a incompetencia da gestão voluntarista, abriu caminho à derrota. O dinheiro fez transformar os clubes em plataformas de negócio em vez de plataformas sociais. Mas não deixou de criar a ilusão de uma pertença falsa a um grupo que se afirma por rejeição do outro. Será que a nossa "dita" é melhor que a do Benfica ou do Porto? A discussão é totalmente estéril. Como nos "desindividualizamos" somos heróis na dinamica do grupo ao atacar o outro pois precisamos da adrenalina para sobreviver. Isso se transformou no jogo do "o meu clube é melhor do que o teu". A massa, à falta de alternativa, entrou no jogo...
    OK, os "gajos estão lá em cima", os movimentos sociais, as ONGs desiludiram. No futebol chegará o dia em que no Parlamento, dois deputados do mesmo clube votarão no mesmo diploma apesar das instruções em contrário dos seus diferentes partidos.
    O problema (e já agora a sugestão para o debate) é a pergunta do positivo: O que fazer?
    Uma ideia (e vale o que vale) desde logo principal é a de tornar a sociedade mais participativa e menos "voyeur" e desde logo, aumentar a participação desportiva. Um clube deveria apoiar actividades de pura participação desportiva. Ser sócio do Sporting deveria dar-me possibilidade de ter um campo para jogar futebol com os meus amigos sportinguistas, campeonato de núcleos etc etc.., eu sei lá, e até quem sabe com outros clubes onde o prémio fosse uma bela vinhaça e um churrasco. Poderia usar as escolas, as agremiações etc.
    É apenas um pequeno exemplo de introdução e marca de valores diferenciais...
    Atenção: Nao vejo como acabar a curto prazo com a espiral que voce denuncia tão bem, o que quer dizer que a introdução de valores éticos não significa, de forma alguma, a bandalha da gestão ou a opção do clube adepto que nos levou onde levou... que o Bruno Fernandes se venda o melhor possivel!
    Sol Carvalho

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    1. Caro Sol Carvalho,

      Voltar a fazer dos clubes plataformas sociais. Não posso estar mais de acordo. Os clubes ou são contexto de sociabilização e de partilha ou não são nada. A desindividualização também é um excelente conceito. A existência de um eu que não é um eu social, leva-nos a procurar um grupo, seja ele qual for. O futebol é uma forma instantânea de suprirmos a necessidade de nos sentirmos parte, sem percebermos que estamos mais sozinhos, desenraizados. Um eu sem sociedade não gera identidade, não gera o indivíduo, o cidadão.

      Que se venda o Bruno Fernandes e se construa uma equipa melhor. É para isso que serve a venda. E não nos falem de dinheiro. Falem-nos de futebol e dêem-nos a ver futebol. É isso que queremos. É para isso que servem os clubes.

      SL

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  10. Excelente. Já fiz a minha parte, partilhei.

    SL

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  11. Sim, há milhões envolvidos, e como qualquer outro setor haverá de encontrar um balanço.
    Sim há certos problemas a resolver no que toca ao desnível de clubes dentro e através das demais ligas.

    Mas o futebol de hoje é uma combinação de ciência, estatística, marketing, entretenimento e finanças. Todas elas fazem hoje o futebol estar melhor que nunca. O futebol evoluiu e continuará a evoluir sempre.

    Os resignados, da velha guarda, que se contentem com campeonatos inferiores, talvez.

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    1. Meu caro,

      O conceito de campeonatos inferiores é todo um programa político. Quem os considera inferiores? São inferiores para quem? Quem são os superiores? Os que querem fazer a super-liga europeia? São os superiores que definem quais são os inferiores?

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  12. Um brilhante texto. Nada acrescento, pois só posso estragar.

    J.OLiveira. SL

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    1. Caro J. Oliveira,

      Os comentários são sempre bem-vindos e não estragam nada.

      SL

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  13. Talvez seja monótono mais um comentário de apreciação, mas a genialidade dos seus textos a isso me obriga.

    SL

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  14. Ia me escapando esta preciosidade...Parabéns! Partilhar será o único comentário SL

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