Para compreender as histórias e narrativas que nos rodeiam e não enlouquecer, é sempre bom regressar um e outra vez ao George Orwell e ao seu 1984. O personagem trabalha na permanente reescrita da história. Se o Ministério da Riqueza estima a produção de 145 milhões de pares de botas e só se produzem 62 milhões, é necessário reduzir a estimativa inicial para 57 milhões para que a habitual narrativa da superação dos objetivos possa continuar. Esta reescrita pressupõe uma reedição do jornal oficial, sendo retirados e destruídos os exemplares da edição inicial. Em nome da verdade, essa reescrita distancia a verdade, estando tão próximos dela os 57, os 62 ou os 145 milhões. No papel, produzem-se milhões e milhões de pares de botas apesar da população continuar descalça.
A história produz naturalmente os seus mitos, reais e, sobretudo, imaginários. Anunciou-se que foi atribuída uma ordem de mérito a um camarada do partido que, mais tarde, caíra em desgraça por razões que se desconhecem, que tanto pode ser corrupção, incompetência, popularidade ou heresia, embora a hipótese mais plausível tenha sido a necessidade da purga como mecanismo indispensável da governação. A reescrita pura e simples obriga a um trabalho insano, envolvendo reedições e destruição de edições anteriores e de arquivos. A forma mais simples de apagar a história acaba por ser a criação de um novo herói perecido em combate ao qual se exaltam a pureza e a coerência da sua vida, toda dedicada ao cumprimento do seu dever de derrotar o inimigo e perseguir os espiões e sabotadores, sendo abstémio, não fumador e celibatário.
Na comunicação social, em geral, e na desportiva, em particular, o processo não é, hoje, muito diferente. Não sendo possível reeditar o passado e destruir as versões originais, constrói-se e reconstrói-se o presente e o futuro de forma a assegurar a sua coerência com esse passado.
Recentemente, o Benfica renovou com o Sálvio e o Jonas, prolongando os tempos de contrato e aumentando os salários diretos e indiretos (incluindo, eventuais prémios de assinatura e outros). Por uma razão ou por outra, estes jogadores pouco contam para o Bruno Lage e para a forma como pretende que jogue a sua equipa. Nada que não aconteça a todos. Muito recentemente, o Sporting dispensou o Nani e o Montero que eram dois dos principais ídolos dos adeptos. Mas no Benfica estas coisas não podem ser tão simples assim. Se assim fossem, ter-se-ia que admitir que as renovações não foram decisões adequadas.
A reescrita da história pressupõe um sem número de personagens picarescas. A mãe do Sálvio que chora baba e ranho para que o seu filho represente o Boca Juniors e a mulher que se desnuda para despedida dos portugueses (com muita pena minha, esta afirmação é de ouvir dizer). O Sálvio afinal regressa porque quer acabar a sua carreira no Benfica, constituindo um reforço (?) como disse um comentador habitual. Noticia-se que o Jonas quer acabar a carreira porque lhe doem as costas, como se as costas não lhe doessem quando renovou o contrato e passou a ser o jogador mais bem pago. O Jonas não disse nada, mas juram-nos que está a chegar para nos comunicar essa sua decisão, preparando-se o clima emocional para a despedida dos benfiquistas. O Jonas, presciente do seu fim, liderou o balneário no apoio ao Bruno Lage e ao João Félix, abraçando o miúdo e incentivando-o a fazer mais e melhor.
Ontem, ouvi estas histórias a um jornalista da TVI. O à vontade como as contava e o orgulho que manifestava por partilhar estas (in)confidências com os maiores da futebolândia nacional contrastam com a progressiva consciencialização do personagem do Orwell. Este totalitarismo tem efeitos. Tem efeitos nos adeptos das equipas adversários, que, por emulação, também gostavam de dispor de uma direção Big Brother que tudo controla e nunca se engana e raramente tem dúvidas. Mas os principais efeitos são nos adeptos do Benfica, como se comprova nos comentários aos nossos “post”. O ser humano é dado a histórias (com agá minúsculo), não sendo por acaso que o “marketing” recorre cada vez mais a elas para nos convencer e para nos identificarmos. As notícias como narrativas dispensam-nos de pensar pela própria cabeça e procurar outras narrativas que se contraponham à narrativa oficial. Winston, personagem do Orwell, não teve um final feliz, como terá, de uma forma ou de outra, o Jonas ou o Sálvio (ou como amanhã terão outros), porque “Big Brother was watching him”.
Caro Rui Monteiro
ResponderEliminarExcelente texto. Os jornalistas petulantes da Tvi ou da Sic, pois os da CmTv são mais simplórios, parecem, de facto, enebriados quando nos dão notícias acerca do "Glorioso". O genial LFV, contrariamente aos presidentes do Sporting ou do FCP nunca é criticado. Veja-se a sova que a direcção do FCP tem levado hoje com o fracasso Bruma. As decisões de LFV e sua estrutura estão sempre certas, no momento presente, mesmo que estejam erradas à posteriori. No caso de Jonas, por exemplo, o erro é flagrante pois, há meses, em vez de vender o dito cujo, foi a correr aumentá-lo quando percebeu (tardiamente claro) que Ferreira e Castillo eram uns flops muito caros. Afinal não precisava nem de um nem dos outros pois tinha Seferovic (que teve para ser dispensado) e João Félix o super prodígio que se revelaria sob a batuta de Bruno Lage. Na verdade LFV já sabia de tudo isso, mesmo quando insistiu, depois de ver a luz, em Rui Vitória. Ele já sabia que Conceição e o FCP iriam falhar na hora H e concerteza já saberia que as arbitragens iriam ser de altíssimo nível nos últimos jogos do campeonato. Como os jornalistas, nomeadamente da TVi, não podem contar-nos a história que LFV é omnisciente, optam por reescrever a história e dizem muitas patetices com um ar idiotamente inteligente (desculpe lá esta boutade).
Meu caro,
EliminarA renovação do Jonas foi uma operação desesperada para calar os adeptos quando o Ferreira e o Castillo se revelaram autênticos “flops”. Afinal a solução estava no banco. O caso do Sálvio não deixa de ser extraordinário. Há séculos que entrava pelos olhos dentro que nem para a frente nem para trás. Para a frente, metia a cabeça no chão e levava a bola até se meter no labirinto de corpos que os adversários montavam. Para trás, nada, ficando o André Almeida entregue a si próprio. Para mim, a grande revolução do Bruno Lage foi a sua substituição e a colocação do Pizzi desse lado, mas a jogar mais por dentro.
Mas esta não é a história oficial. Afinal o LFV não vê a luz. O LFV é uma central fotovoltaica que nos ilumina a todos e especialmente aos benfiquistas.
SL
Caro Rui,
ResponderEliminarMuito boa a chamada ao Orwell. Acrescentaria Baudrillard assim de cabeça, o simulacro não esconde a verdade, é a verdade que esconde o que não existe: o simulacro é verdadeiro. Em "simulacros e simulação" (esta última muita cara a alguns).
Um abraço e parabéns pela crónica
Obrigado Gabriel!
EliminarA nossa vida ou a nossa compreensão de nós próprios dispensa a realidade. É por essa razão mais profunda que a TVI nos impinge uns tantos cromos.
Um abraço
O simulacro é uma construção (artifício) ou distorção (deturpação) que pode ser desconstruída (desmontada) ou desligada.
ResponderEliminarNão vou desmontar o computador ou a televisão, mas posso desligar-me dos simulacros que a propaganda me quer impingir através deles.
Isto deixando metafísicas, testemunhas de Jeová e outras criaturas deste ou doutro mundo de fora. Esses só entram se esquecerem a cartilha e para beber água. Ou uma cervejinha, se a trouxerem ou se houver a mais. Mas sem balelas.
Meu caro,
EliminarÉ um felizardo. Cá em casa deixei há muito de ser dono do comando. Quem manda na televisão não sou eu. Entra o que tem de entrar e ninguém me passa bola.
SL
Estou algo curioso para ouvir da CS os contornos do negócio João Félix. Afinal vem jogadores; subtraindo os 30% par JM, mais outras comissões e 1,2 milh para o FCP, vai dar mais ou menos uns 40 milhões mal contados. É o que vale
ResponderEliminarO Atletico de Madrid nunca fez um mau negócio!
João Balaia
Caro João Balaia,
EliminarÉ sempre interessante conhecer os detalhes embora o esquema de Ponzi tenha os mecanismos que o definem. Vendes caro para comprar caro a quem também vende caro para comprar caro também até se chegar à compra cara a quem se vendeu caro. Depois há uns detalhes com os faseamentos dos pagamentos porque convém que o dinheiro vá rodando e não pare de rodar, até porque ninguém todo o graveto de uma vez. Vêm por fim as comissões, que são a verdadeira razão para tudo isto existir. As comissões que se conhecem e as que se desconhecem mas se adivinham.
SL
30% para o Mendes? Percebemos a necessidade de simulacro, de construção (artifício) ou distorção (deturpação) tal é a dor que sentem.
EliminarMas o Mendes não é o empresário do Félix, o empresário chama-se Moreira de Sá.
Os 1,2M da cláusula de solidariedade são pagos pelo AM.
Resta a comissão aos intermediários que andará à volta de 10%, no máximo, que será entregue a Moreira de Sá. O que ele faz ao dinheiro é para o lado que o Benfica dorme melhor.
Porque irá dormir com cerca de 110M líquidos em caixa!
Com jeitinho ainda me paga a prestação da casa este mês
Eliminarbut... but... "We've always been at war with Eastasia".
ResponderEliminarO "mundo" pintado pelas publicações de índole desportiva (jornais e jornalistas, hélas! isso é algo completamente diferente), é ainda mais distorcido que as sombras da caverna de Platão. Talvez para se adequar às capacidades dos receptores-alvo?
Meu caro,
EliminarO George Orwell a partir dos jornais e programas desportivos não teria ido longe. Esta é uma versão em função da (in)capacidade cognitivo dos receptores-alvo que refere.
SL
Que burros que são os benfiquistas !! Inteligentes somos nós que levavamos com tipos nada orwelianos , género rocket ou BC
ResponderEliminarMeu caro,
EliminarA linha editorial está escrita há muito e encontra-se no subtítulo do blogue. "Falaremos do Sporting, mais mal do que bem. Falaremos também do Benfica, sempre mal. Falaremos do Porto, conformados".
Agora estamos a falar mal do Benfica. Amanhã ou depois falaremos mal do Sporting. Cada coisa no seu tempo. Quando falamos mal deles não falamos mal de nós e vice-versa.
SL
O péssoal do Slb não está habituado a ler publicações que respeitem a sua linha editorial.
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