quinta-feira, 7 de março de 2019

A Batalha de Azincourt do andebol

O desporto é a guerra por outros meios, pacíficos, claro está. Quem assistiu ao jogo de ontem contra o Porto em andebol tão cedo não o esquecerá, seja portista ou sportinguista. Nestas circunstâncias vem-nos sempre à cabeça a Batalha de Azincourt e a peça de teatro Henrique V de William Shakespeare. 

Como os franceses, os do Porto eram superiores em número e armamento. A equipa é constituída por jogadores de notável envergadura física que poucos do Sporting podem igualar. Dispõe de dois guarda-redes brilhantes, especialmente o Alfredo Quintana, que durante épocas e épocas foi a nossa besta negra. A equipa é excelentemente treinada e dispõe de um modelo de ataque com sete jogadores que se tem revelado uma dor de cabeça para todos os adversários, nacionais e internacionais, aproveitando a referida envergadura física de dois dos três pivôs cubanos e do enorme acerto das pontas, nomeadamente do António Areia. 

Os do Sporting ganham em experiência, em particular com a experiência do Ruesga, mas a equipa no seu conjunto apresenta diversas fragilidades, sendo a mais evidente a ausência de um lateral direito de raiz. Não dispõe de alternativas sólidas em certas posições, como é o caso do central e do ponta direita (o Arnaud Bingo foi contratado recentemente mas pouco ou nada tem sido utilizado). Sobretudo, o plantel é curto em qualidade e quantidade para a exigências das diferentes competições em que o Sporting está envolvido, bastando a lesão de um jogador para que essas fragilidades sejam ainda mais evidentes.

A equipa do Porto entrou melhor e rapidamente ficou por cima do marcador e do jogo. O ataque do Sporting emperrava, com pouca circulação de bola e dificuldade de fazer chegar a bola ao pivô, restando a meia distância, com eficácia intermitente. Na defesa, havia muita dificuldade de parar o jogo das pontas do Porto. Para dificultar ainda mais a tarefa, um dos árbitros resolveu intrometer-se no jogo, fazendo um número que costumamos ver todos os fins-de-semana no campeonato de futebol e transformando-se no principal artista. A exclusão por quatro minutos do Tiago Rocha constitui um manual de tudo o que um árbitro não pode, nem deve, fazer naquelas circunstâncias. Os livres de sete metros convertidos pelo Ghionea permitiram-nos ir para o intervalo a perder só por três (12-15). 

Na segunda parte tudo mudou. Estes jogos, os jogos de e para campeões, ganham-se na defesa, ganham-se em equipa. É necessária muita entreajuda. É preciso que quando um jogador largue o pivô outro seja avisado e faça a necessária cobertura. É preciso que quando um jogador é passado na zona central, logo outro apareça na ajuda e pare o jogo. É preciso assegurar adequada deslocação dos jogadores ao longo da linha dos seis metros para que o adversário não ganhe vantagem no local onde circule a bola, permitindo libertar os pontas. Essa deslocação é dificultada pelos pivôs que têm essa como missão principal, sobretudo no caso do Porto, quando joga com dois. É preciso uma grande articulação entre o guarda-redes e os restantes jogadores porque, sozinho, não enche a baliza toda. 

O Sporting fez praticamente tudo bem a defender. É quase impossível permitir que uma equipa como a do Porto marque somente oito golos em trinta minutos. Mas não basta ter um plano para defender, é necessário acreditar e acreditar que o colega de equipa ao nosso lado nos ajuda como nós o ajudamos. Cada defesa faz acreditar mais nessa solidariedade e nesse sentimento de partilha. E o público é fundamental para essa crença. Os sportinguistas que estiveram no João Rocha acreditaram e fizeram os jogadores acreditar cada vez mais, enquanto procuravam desanimar os do Porto e desacreditar o árbitro que se tinha revelado artista na primeira parte. E apareceu Skok, pelos seus méritos e pelos méritos dos seus colegas a defender. 

No ataque, com o Ruesga a comandar, sabemos que não há precipitações e as jogadas decorrem como o planeado. O Francis Carol apareceu quando era preciso e o Frade foi uma completa surpresa para mim. Foi imparável. É a partir de uma exclusão do Miguel Martins arrancada por ele que o Sporting passa para a frente do jogo e amplia uma e outra vez o resultado, com dois golos dele também, depois de ganhar o seu espaço junto de calmeirões do Porto com mais de cem quilos e bater um guarda-redes como o Alfredo Quintana que sai rapidamente em leque como nenhum outro. 

O jogo acaba como a Batalha de Azincourt, com os franceses batidos, mas com o “fair play” que se exige aos vencedores e aos vencidos (o Canela agradeceu ao público e aos seus jogadores e destacou a qualidade da equipa do Porto e o Magnus Anderson, embora perdendo, não destoou). O que uns e outros nos proporcionaram foi um excecional espetáculo com emoção a rodos. Há quem diga que acabámos. Há quem diga que estamos insolventes. Há quem diga que estamos divididos entre croquetes e brunetes. Perguntem a cada um que esteve no Pavilhão João Rocha e aos que viram o jogo na televisão o que sentiu e o que pensou, isto é, o que viveu. Saltámos com o Frankis, lutámos com o Frade, atirámo-nos para o chão com o Skok, dissemos com o Ruesga aos colegas qual era a jogada que iríamos desenvolver, festejámos com eles como se tivéssemos sido nós a marcar os golos e a defender os remates dos adversários. Durante aquele tempo memorável só houve Sporting e fomos todos Sporting!

13 comentários:

  1. Belíssimo filme do jogo. Épico, como no hóquei, no voley, no Futsal.
    É tão grande.
    É tão clube o nosso Sporting

    Allfacinha

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    1. Obrigado. Ser do Sporting e ser Sporting é uma coisa simples. Vive-se simplesmente.

      SL

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  2. Caro Rui:

    Segundo reza a lenda, o famoso gesto com o dedo do meio esticado, provém dos arqueiros ingleses e foi feito no fim da batalha, em resposta à ameaça do homólogo Francês de que iria amputar o dedo que larga a corda dos arqueiros, quando fossem derrotados e capturados.

    Antes da batalha, o Rei Inglês proferiu um discurso arrebatador, galvanizando os seus soldados.

    Durante a mesma, Henrique V demonstrou bravura e fraternidade extraordinárias, quando himself e em pleno combate, à força de espada, resgatou o seu irmão mais novo das mãos dos soldados franceses que o haviam capturado.

    Assim fomos nós TODOS ontem: corajosos, destemidos e solidários, como aliás descreveu e muito bem, no último trecho do post.

    Atentamente:

    Miguel Correia

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    1. Caro Miguel Correia,

      Esta guerra do Sporting dura há mais tempo do que a guerra dos cem anos. Há muito que não me emocionava tanto a ver um jogo seja de que modalidade for.

      SL

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  3. Belo post. Fomos ontem Sporting e somos hoje e sempre! É tão grande o nosso Sporting.
    J.Rocha. SL

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    1. Caro J. Rocha,

      O nosso Sporting é imenso. Ser do Sporting é simples: estamos a ver um jogo como aquele e sabemos que pertencemos ao Sporting.

      SL

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  4. De facto, o Fcp tem muitos jogadores de grande estatura mas ontem , na segunda parte, o Sporting foi mais equipa.
    Percebo a comparação com a batalha de Azincourt em que os ingleses, apesar de em menor número, venceram mas acabaram por perder a Guerra, chamada dos cem anos. Nós não queremos vencer apenas esta batalha mas sim vencer a guerra.
    P.S. No andebol não temos de ouvir os comentários imbecis da Sport Tv.

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    1. Meu caro,

      A SportingTv tem um excelente comentador. Aprende-se e percebe-se melhor o jogo com ele. Espero que esta batalha não acabe como a guerra dos cem anos. Como andámos há mais tempo do que isso, também não pode ser uma guerra dos cem anos, quanto muito dos duzentos pelo menos.

      SL

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  5. Quanto ao Arnaud Bingo , estás mal informado ele não pode jogar
    porque não estava inscrito na altura a que correspondia a data do jogo.OK:

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    1. Obrigado.

      Estava à espera que o Bingo fosse a arma secreta, porque não tem jogado praticamente. Este jogo contra o Porto estava em atraso e agora percebo bem.

      SL

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  6. Brilhante descrição e espírito de união das equipas das modalidades do nosso SCP! Essa que fazia tanta falta na modalidade dos ricos, jogadores, equipas técnicas e aspirantes a dirigentes...

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    1. Obrigado.

      Há uma cultura de vitória nas modalidade (ditas) amadoras. O caso mais evidente até é o atletismo. Era importante que esta e qualquer outra direção percebe-se porque razão existe essa cultura de vitória que infelizmente não existe no futebol.

      SL

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  7. Não há meninos mimados e há grandes capitães e treinadores que têm o clube acima de tudo (também não há Otávios)

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