terça-feira, 19 de março de 2019

Longos dias têm cem anos

“Longos dias têm cem anos”, o aforismo, que também constitui título de um dos livros da Augustina, não me saía da cabeça. Vinha-me à memória não a obra da Vieira da Silva mas os Vieiras da Silva em que fui tropeçando ao longo da vida, que duram e duram por eles próprios e pela sua descendência. Uma semana de altos e baixos como nenhuma outra. A minha filha a ligar-me e a contar o seu sucesso sem necessidade de apelido, o apelido do meu pai que faço questão de honrar todos os dias quando me levanto e me vejo ao espelho. O jogo contra o Santa Clara constituía a oportunidade adequada para se me varrer da cabeça este aforismo. 

Não vi a primeira parte. Chego ao Flávio e encontro um dos meus colegas de purgatório à beira de uma apoplexia. A segunda parte inicia-se a bom ritmo. Pelo que percebo, a equipa do Sporting está mais determinada e a jogar melhor. O Acuña vê o Bruno Fernandes “à mama” e faz um arremesso da linha lateral de vinte metros que o isola, para uma cavalgada imparável até fazer um compasso de espera para fixar dois defesas e passar a bola ao Raphinha com tempo para perguntar ao guarda-redes para que lado a queria levar e o deitar ao comprido. Animei-me. Debalde. A equipa rapidamente se transformou numa pilha de nervos e o meu colega sportinguista ficou numa pilha de nervos ainda maior. Cada bola recuperada era bola perdida no passe seguinte, com especial destaque para o Diaby. Nenhum outro jogador levou a este extremo o conceito de “último passe”: quando ele passa a bola abre-se um buraco negro e ela desaparece para aparecer no segundo seguinte na bancada, atrás da baliza, nas mãos do apanha-bolas ou nos pés do adversário. 

“Longos dias têm cem anos” volta mais uma vez. Procuro concentrar-me no jogo para tirar este pensamento da cabeça. Não o consigo tirar mas o Marcel Keizer tira o Doumbia, seguindo as melhores práticas internacionais de supervisão prudencial dos bancos centrais: médio amarelado é médio substituído. O comentador da SporTv começa a ter alucinações e a ver o que ninguém vê, avisando-nos dos perigos do Santa Clara. Mas o Santa Clara é uma equipa madura que dispõe de princípios de jogo consolidados e, por isso, troca a bola entre os jogadores no seu meio-campo, conseguindo o que não conseguia o adversário, segurando a bola sem que se criasse qualquer perigo para o Sporting. Entrou o Miguel Luís e a equipa estabilizou. Deixaram de se perder tantas bolas e o Wendell passou a jogar tendo-o como referência e deixando o futebol brinca-na-areia. O Bas Dost continuava a arrastar-se em campo, sem confiança, sem fé em si próprio, como se carregasse a maldição de levar o mundo às costas. 

O tempo de jogo vai-se esvaindo até acabar e “longos dias têm cem anos” não mais me sai da cabeça. Se o futebol não serve para nos tirar coisas da cabeça, serve exatamente para quê e para quem? Talvez a culpa não seja do futebol mas do Sporting. Há sempre tempo, um tempo em que tudo será possível porque “longos dias têm cem anos”.

sábado, 16 de março de 2019

Enquanto os outros não jogam, folgam as costas


Menos de vinte e cinco mil pessoas em Alvalade (começa a ser normal). Mais algumas a assistir em casa ou no café. Treinar mais, com mais tempo, pelos vistos não é melhor. Mas deve dar para ver que Doumbia é um bocadinho melhor que o Gudelj. A semana tinha sido interessante em termos de faca e alguidar e alguns ressabiados trouxeram do carnaval a fantasia de messias; fantasia essa que volta e meia paira junto à estátua do leão. A nossa fantasia deveria ser apenas o Cristiano Ronaldo (ou, talvez, a Georgina). É o mais próximo que um dos nossos estará do Olimpo.

Isto tudo para não falar do jogo. O adversário demorou mais de meia hora para passar do meio campo. Deve ser a isso que os treinadores chamam de exibição conseguida. O Sporting quando não tem um adversário arranja sempre um. Nem que seja dentro de portas. Fizemos de tudo para não chatear demasiado o nosso oponente, ao mesmo tempo que tentávamos lançar no mercado uma nova gama de soporíferos. Quando chegou o intervalo foi um alívio para todos.

A segunda parte abriu praticamente com uma perdida do Raphinha. Logo a seguir uma bola, sabe-se lá bem como, chegou aos pés de um nosso adversário em frente à baliza, o qual, atónito, ainda olhou para o treinador a perguntar se era para marcar, a resposta foi qualquer coisa como acerta num dos gajos, um golo da nossa parte não faz parte da estratégia. E assim foi, o tipo chutou contra o Ristovski que era quem estava mais à mão. Da nossa parte, a estratégia não englobava qualquer golo de bola parada, principalmente de canto (e foram uns quinze). Mas não dizia nada na folha de serviço sobre marcar a partir de um lançamento lateral.

O Acuña que jogou muita bola lá no bairro sabe bem a importância de um bom lançamento para um companheiro que esteja à mama. Neste caso apenas desmarcou o Fernandes que já fez este ano duas voltas ao mundo em quilómetros corridos, enquanto a equipa adversária tinha adormecido com aquele medicamento que tínhamos distribuído na primeira parte. Contra o Bruno Fernandes não há estratégia que valha, o passe foi meio golo para o Raphinha brilhar.

A partir daí o treinador adversário fingiu que estava desiludido com o resultado. O Keiser que já sofre da síndrome portuguesa de que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar, fingia que ia mexer para tentar matar o jogo. No meio disto tudo não admira que a bola não entre nas balizas. A não ser por um acaso, ou num lance trabalhado, como um lançamento de linha lateral com a equipa adversária a dormir.

quarta-feira, 13 de março de 2019

A Lenda e a Maria Albertina

[A Lenda] 
Não vale a pena dizer muito mais sobre o que fez o Cristiano Ronaldo ontem no jogo da Juventus contra o Atlético de Madrid. Tudo está dito e só vale a pena acrescentar que é dos poucos jogadores que se transformou numa lenda ainda durante a sua carreira. Daqui a muitos anos, muitos pelo mundo fora dirão aos netos “eu vi jogar o Cristiano Ronaldo” e contarão os seus feitos e, especialmente, os seus golos. Muitos, mas menos, dirão que o viram jogar com a camisola do seu clube. Poucos, muito poucos dirão que o viram jogar pela primeira vez e marcar o seu primeiro golo com a camisola do seu clube no seu estádio. Não aprecio especialmente as homenagens e muito menos em vida. Mas, quando o Cristiano Ronaldo deixar de jogar, devemos mandar fazer uma estátua à frente do Estádio de Alvalade para que se transforme num lugar de culto para todos aqueles que amam o futebol. 

[Maria Albertina] 
Jesus, o Jorge, ressuscita de vez em quando, não para a redenção do Homem e a sua salvação, mas para declarar ao Mundo as suas descobertas que vão desde o remédio para a queda do cabelo à tabela periódica. Há sempre um pé de microfone que aparece nos locais mais improváveis, nos aeroportos, num restaurante, “wherever”, para lhe permitir transmitir ao Mundo as suas revelações e descobertas. Há dias revelou que o Sporting estava definitivamente arredado da disputa do campeonato, contrariamente ao que aconteceu nas três épocas em que foi treinador da nossa equipa. Depois de um colapso organizativo, com três direções em meia dúzia de meses e três treinadores durante o mesmo período, estamos com mais um ponto do que na época de 2016/2017 por esta altura e a menos quatro e três pontos, respetivamente do Benfica e do Porto, não dispondo de descobertas suas como o Elias, o Marković, o André, o Campbell, o Castaignos ou o Alan Ruiz. No Sporting só ganhou mais uma coisa do que todos os outros: dinheiro.

segunda-feira, 11 de março de 2019

The Benny Hill Show

Os jogos do Sporting não podem ser apreciados pelo futebol praticado mas como espetáculos do mais puro e simples entretenimento. A equipa do Sporting faz a sua parte mas sem a prestimosa colaboração da equipa adversária, dos árbitros e dos comentadores durante e após o jogo (?) o espetáculo não funcionaria. Este jogo contra o Boavista tinha todos os condimentos para se transformar num episódio do “Benny Hill”: uma equipa baseada num dos ancestrais princípios do futebol português do “abaixo do pescoço é canela” com um treinador patusco que entra em campo para placar jogadores adversários e na “flash interview” ou na conferência de imprensa que se sucedem aos jogos diz coisas surpreendentes e engraçadas. Quem viu o jogo não deu o tempo por mal-empregado. 

Os do Sporting iniciaram a partida com imensa vontade de nos divertir e fizeram-no logo aos três minutos. Livre a favor do Boavista, corte de cabeça do Luiz Phellype para o interior da grande área, escorregão do Coates, Ristovski a disputar o lance em ajuda ao colega, bola a bater no cocuruto da cabeça de um jogador adversário e a ressaltar na canela de outro, enganando o Renan Ribeiro e colocando-nos a perder por um a zero. Não há culpados, há excelentes atores que interpretaram uma cena impossível deste guião. Os minutos seguintes trouxeram-nos as cenas do guião a que estamos habituados. O Boavista nem sequer pressionava a saída da bola da nossa defesa e concentrava os seus jogadores nos últimos trinta metros, que iam batendo em tudo o que mexia. Na linguagem da dramaturgia futebolística, o árbitro aplicava um critério largo, representando o seu papel de forma convincente, chegando à tradicional cena de ir conversar com um jogador do Boavista que tinha varrido o Acuña para o informar e para nos informar com gestos enérgicos e decididos que as coisas assim não podiam continuar. As coisas continuaram e acabou por mostrar um amarelo a um dos jogadores do Boavista, tendo mostrado logo a seguir outro ao Gudelj sem qualquer diálogo prévio, admitindo, e bem, que tinha ouvido a conversa anterior. O empate acabou por aparecer porque os jogadores do Boavista não quiseram representar pior do que os do Sporting e, por eles, os ressaltos não escolhem baliza. 

O comentador da SporTv procurava encontrar uma lógica e um propósito para o que íamos vendo, explicando-nos todo e qualquer lance como algo de previsível. Não tenho dúvidas que se entrasse um javali em campo acossado por uma matilha de cães e tiros de caçadeira nos transmitiria que “já se previa”. Atento aos pormenores do jogo, que tanto podiam ser um franzir de sobrancelhas ou um ajeitar de melena, viu a meio da primeira parte um avançar de linhas do Boavista e uma pressão sobre a bola mais à frente. Não são coisas que vejam a olho nu. É necessário aparelhagem sofisticada de nanometrologia para as ver ou a um ácaro num dos borbotos do “pullover” do Vidigal. Dá a ideia que esta parte do guião é sempre a mesma, é uma cartilha, ou uma cassete como a que recorrem os partidos políticos, que à custa de se repetirem umas tantas afirmações se confunde (falta de) coerência com razão. 

A segunda parte trouxe-nos persistências e novidades. Os do Boavista passaram a atirar-se para o chão mais amiúde, embora continuando a acertar forte e feio nas canelas dos do Sporting. As caneladas e os mergulhos davam origem a faltas sem distinção técnica e disciplinar, equiparando o árbitro assim aquilo que no futebolês contemporâneo se designa por “intensidade” de uns e outros lances. Com o aproximar do fim do jogo, passaram também a adoecer, enquanto na SporTv se efetuava o diagnóstico clínico e se concluía pela fadiga e desgaste físico como se, por oposição, os do Sporting tivessem jogado sentados. As oportunidades de golo do Sporting sucediam-se enquanto na SporTv nos alertavam para os perigos do contra-ataque do Boavista que ninguém viu e muito menos as suas consequências, bastando perguntar ao Renan Ribeiro se se lembra de ter efetuado uma defesa sequer. 

Estava-se nesta “Crónica de uma Morte Anunciada”, quando, dentro da área, um defesa do Boavista pregou uma estalada no Raphinha. O árbitro marcou “penalty” e assistiu-se à habitual manifestação do direito à indignação, com a música de fundo da SporTv sobre a “intensidade”. Na dramaturgia como na vida, os estragos dos estalos não se medem pela vermelhidão da bochecha do atingindo mas pela ferida no mais intimo e profundo de cada um, na alma, no orgulho. Numa peça como esta o árbitro tinha de marcar “penalty” para resgatar o orgulho ferido do Raphinha. Esta não era a peça que os do Boavista pretendiam representar, como ficámos a saber pelo jornal “A Bola” do dia seguinte ao informar-nos que Jorge Loureiro, filho de Valentim Loureiro, desferiu murros na nuca de Miguel Nogueira Leite, membro do Conselho Diretivo do Sporting, sem que tivesse sido marcado qualquer “penalty”, evidenciando-se a dualidade de critérios. O Bruno Fernandes marcou o golo da ordem e se não fosse a intervenção final do treinador Vidigal mais não havia a contar sobre este jogo. Iniciou a “flash interview” como a habitual teoria da conspiração para eliminar o último sobrevivente de Auschwitz até que, entusiasmado, se referiu à injustiça do resultado perante as oportunidades criadas pelo Boavista, tendo-lhe dado uma branca quando as pretendeu enumerar. 

Estas peças do Sporting têm a vantagem de se prolongarem muito para além dos noventa minutos de jogo, tal o interesse que despertam. N’ ”A Bola” do dia seguinte, um comentador (de teatro) explica-nos que houve um “penalty” perdoado ao Sporting, por falta de Acuña sobre o Perdigão, embora, a propósito da interpretação da UEFA destes lances, nos informe ao mesmo tempo que “a infração não foi óbvia, clara e evidente”. Explica-nos também que o Sporting foi beneficiado com um “penalty”, apesar de o Raphinha ter sido “tocado, no pescoço, pelo braço esquerdo de Edu Machado [… e] o contacto ter sido evidente”. Se bem o percebemos, o que é “evidente” não é e o que não é “evidente” é, nas suas próprias palavras, parafraseando às avessas o conhecido “nem tudo o que parece é”. Os comentadores vêem coisas nos jogos que não se vêem a olho nu. Ou recorrem a aparelhagem sofisticada de nanometrologia, como referi atrás, ou, então, fumam um produto que os deixa muito bem-dispostos. Se for a segunda, avisem, pois gostava de experimentar para ver os jogos mais divertido. 

domingo, 10 de março de 2019

PH é uma escala numérica utilizada para especificar a acidez ou basicidade de uma solução aquosa.


O Marcel Keizer disse quase tudo na conferência de imprensa antes do jogo: não era decisivo (o jogo), o Boavista era uma equipa com vista histórica para o panteão europeu dos que lá vão fazer de figurantes (mais ou menos como o Sporting), e o resto (o que se passa no Sporting) não era (nem podia ser) da competência da equipa de futebol profissional. Ficamos descansados.

Ainda estávamos descansados quando sofremos o golo da praxe. Impõe-se uma intervenção pública contra estas praxes que nos governam os primeiros minutos de jogo. Feita a interpelação ao tribunal europeu dos direitos dos clubes contra as praxes, lá marcamos um golo às três tabelas. O jogo corria de feição, ao ponto de aperfeiçoarmos os nossos falhanços. Falhanço ainda se escrevia com ph, quando o Luiz Phellype decidiu aprimorar o seu gosto de sniper pelos postes das balizas. Não basta falhar é preciso falhar com precisão.

O jogo foi uma constante de tiro ao meco. Ora os boavisteiros a acertar nas pernas dos jogadores do Sporting, ora o Sporting a rematar contra qualquer coisa que intercedesse com a possibilidade de um golo. Somos bons nisso, até a atmosfera nos repele algumas iniciativas.

Continuamos a respirar o ar do empate, sempre com o Bruno Fernandes a fazer de bomba da asma, a medir o ph do Raphinha, sempre em níveis consideráveis, continuamos com o Acuña decidido a não ser expulso, em qualquer das posições loucas em que joga, com o Coates a sair com a bola de peito feito a fazer de William, para depois ir tentar marcar de cabeça. O Mathieu também manteve o seu ph do costume, mas com t, e sem lesões. Depois fomos ao BAR. Foi limpinho. Alguma acidez, nada básica.

quinta-feira, 7 de março de 2019

A Batalha de Azincourt do andebol

O desporto é a guerra por outros meios, pacíficos, claro está. Quem assistiu ao jogo de ontem contra o Porto em andebol tão cedo não o esquecerá, seja portista ou sportinguista. Nestas circunstâncias vem-nos sempre à cabeça a Batalha de Azincourt e a peça de teatro Henrique V de William Shakespeare. 

Como os franceses, os do Porto eram superiores em número e armamento. A equipa é constituída por jogadores de notável envergadura física que poucos do Sporting podem igualar. Dispõe de dois guarda-redes brilhantes, especialmente o Alfredo Quintana, que durante épocas e épocas foi a nossa besta negra. A equipa é excelentemente treinada e dispõe de um modelo de ataque com sete jogadores que se tem revelado uma dor de cabeça para todos os adversários, nacionais e internacionais, aproveitando a referida envergadura física de dois dos três pivôs cubanos e do enorme acerto das pontas, nomeadamente do António Areia. 

Os do Sporting ganham em experiência, em particular com a experiência do Ruesga, mas a equipa no seu conjunto apresenta diversas fragilidades, sendo a mais evidente a ausência de um lateral direito de raiz. Não dispõe de alternativas sólidas em certas posições, como é o caso do central e do ponta direita (o Arnaud Bingo foi contratado recentemente mas pouco ou nada tem sido utilizado). Sobretudo, o plantel é curto em qualidade e quantidade para a exigências das diferentes competições em que o Sporting está envolvido, bastando a lesão de um jogador para que essas fragilidades sejam ainda mais evidentes.

A equipa do Porto entrou melhor e rapidamente ficou por cima do marcador e do jogo. O ataque do Sporting emperrava, com pouca circulação de bola e dificuldade de fazer chegar a bola ao pivô, restando a meia distância, com eficácia intermitente. Na defesa, havia muita dificuldade de parar o jogo das pontas do Porto. Para dificultar ainda mais a tarefa, um dos árbitros resolveu intrometer-se no jogo, fazendo um número que costumamos ver todos os fins-de-semana no campeonato de futebol e transformando-se no principal artista. A exclusão por quatro minutos do Tiago Rocha constitui um manual de tudo o que um árbitro não pode, nem deve, fazer naquelas circunstâncias. Os livres de sete metros convertidos pelo Ghionea permitiram-nos ir para o intervalo a perder só por três (12-15). 

Na segunda parte tudo mudou. Estes jogos, os jogos de e para campeões, ganham-se na defesa, ganham-se em equipa. É necessária muita entreajuda. É preciso que quando um jogador largue o pivô outro seja avisado e faça a necessária cobertura. É preciso que quando um jogador é passado na zona central, logo outro apareça na ajuda e pare o jogo. É preciso assegurar adequada deslocação dos jogadores ao longo da linha dos seis metros para que o adversário não ganhe vantagem no local onde circule a bola, permitindo libertar os pontas. Essa deslocação é dificultada pelos pivôs que têm essa como missão principal, sobretudo no caso do Porto, quando joga com dois. É preciso uma grande articulação entre o guarda-redes e os restantes jogadores porque, sozinho, não enche a baliza toda. 

O Sporting fez praticamente tudo bem a defender. É quase impossível permitir que uma equipa como a do Porto marque somente oito golos em trinta minutos. Mas não basta ter um plano para defender, é necessário acreditar e acreditar que o colega de equipa ao nosso lado nos ajuda como nós o ajudamos. Cada defesa faz acreditar mais nessa solidariedade e nesse sentimento de partilha. E o público é fundamental para essa crença. Os sportinguistas que estiveram no João Rocha acreditaram e fizeram os jogadores acreditar cada vez mais, enquanto procuravam desanimar os do Porto e desacreditar o árbitro que se tinha revelado artista na primeira parte. E apareceu Skok, pelos seus méritos e pelos méritos dos seus colegas a defender. 

No ataque, com o Ruesga a comandar, sabemos que não há precipitações e as jogadas decorrem como o planeado. O Francis Carol apareceu quando era preciso e o Frade foi uma completa surpresa para mim. Foi imparável. É a partir de uma exclusão do Miguel Martins arrancada por ele que o Sporting passa para a frente do jogo e amplia uma e outra vez o resultado, com dois golos dele também, depois de ganhar o seu espaço junto de calmeirões do Porto com mais de cem quilos e bater um guarda-redes como o Alfredo Quintana que sai rapidamente em leque como nenhum outro. 

O jogo acaba como a Batalha de Azincourt, com os franceses batidos, mas com o “fair play” que se exige aos vencedores e aos vencidos (o Canela agradeceu ao público e aos seus jogadores e destacou a qualidade da equipa do Porto e o Magnus Anderson, embora perdendo, não destoou). O que uns e outros nos proporcionaram foi um excecional espetáculo com emoção a rodos. Há quem diga que acabámos. Há quem diga que estamos insolventes. Há quem diga que estamos divididos entre croquetes e brunetes. Perguntem a cada um que esteve no Pavilhão João Rocha e aos que viram o jogo na televisão o que sentiu e o que pensou, isto é, o que viveu. Saltámos com o Frankis, lutámos com o Frade, atirámo-nos para o chão com o Skok, dissemos com o Ruesga aos colegas qual era a jogada que iríamos desenvolver, festejámos com eles como se tivéssemos sido nós a marcar os golos e a defender os remates dos adversários. Durante aquele tempo memorável só houve Sporting e fomos todos Sporting!

segunda-feira, 4 de março de 2019

Do cozido à portuguesa à massa com frango

Ontem, fui a Bucos, Cabeceiras de Basto, ao almoço de aniversário de um primo da minha mulher em plena XXIII Festa da Orelheira e do Fumeiro. Nestas localidades e circunstâncias não se brinca. Almoço de cozido à portuguesa porque quem não serve para comer também não serve para trabalhar e o trabalho define todos e cada um: todos trabalham e ninguém se dá com quem não trabalha. As conversas, embora fluídas, não envolveram diálogos sobre o clássico do dia anterior, porque o dia não era para chatices entre portistas e benfiquistas. Em terreno neutro, aceitaram a minha arbitragem. Ser do Sporting serve pelo menos para estas coisas da arbitragem: qualquer árbitro que se preze ou é do Sporting ou do Oriental. O almoço foi-se arrastando e passou a merenda, sem ninguém dar por isso, concluindo-se este périplo pelo interior profundo com uma visita aos “stands” dos enchidos e dos presuntos. 

Por volta das 19.00h, regresso a casa e adormeço durante a viagem. Chego a Braga em ótimas condições físicas e anímicas para ver o jogo contra o Portimonense. O primeiro quarto de hora parecia a continuação do almoço. Serviram-nos paio do lombo cozido. O Raphinha isola-se e remata, a bola às três tabelas parece que vai entrar até chegar o guarda-redes “in extremis” a defendê-la para canto. Canto, Bas Dost a saltar e a não chegar à bola, permitindo que o Diaby de olhos fechados lhe enfiasse uma marrada que a faz ressaltar no relvado, desviando-se os defesas para permitirem que entrasse depois de tabelar no poste. Não tendo sido à primeira, foi à segunda: passe em profundidade do Bruno Fernandes com a bola a passar entre o lateral e o central para a desmarcação do Raphinha que não foi de modas e enfiou-a dentro da baliza sem hipóteses para o guarda-redes. 

Nos últimos jogos, o Marcel Keizer tem optado por jogar com três centrais. Neste, resolveu jogar só com um, o Mathieu. Esta ciclotimia podia-nos ter custado caro. O Portimonense atinou e criou cerca de duzentas e cinquenta e oito oportunidades de golo. Umas vezes safou o Mathieu e outras o Renan Ribeiro. Os jogadores adversários inconseguiam e o Gudelj resolveu dar uma ajuda. Perdeu a bola na zona central, próximo da grande área, procurou recuperá-la com o olhar e uns ligeiros espasmos corporais, permitiu o passe para o lado e não acompanhou o seu adversário, garantido assim que a tabelinha se concretizasse e o jogador a quem tinha entregado a bola inicialmente se isolasse e fizesse o dois a um. O Raphinha ainda se isolou do lado direito, passou para o meio da área, o Bas Dost simulou ir à bola e deixou-a passar para o Diaby que, vendo aproximar-se um ouriço-caixeiro, procurou tocar-lhe com todo o cuidado para não se picar até encontrar forma de lhe enfiar um biqueiro e ver-se livre do bicho. 

Se a primeira parte parecia um jogo de andebol, a segunda decorreu como um normal jogo do campeonato nacional. Os do Portimonense deixaram-se de coisas e os do Sporting deixaram as coisas como estavam. O jogo passou a valer pelos apitos limpinhos, tão limpinhos que se chegou a comemorar como se de um golo se tratasse o primeiro amarelo mostrado a um jogador do Portimonense cerca dos oitenta minutos. Para não acabarmos com o coração nas mãos, depois de uma biqueirada para a frente, um jogador do Portimonense resolveu fazer uma placagem ao Bruno Fernandes para um “penalty” limpinho. Os comentadores da SporTv não esconderam a sua consternação: “não havia necessidade!”, desabava um. O Bruno Fernandes fez a paradinha que todos sabem que vai fazer, inclusivamente o guarda-redes, e fez o golo que todos também sabem que vai fazer, inclusivamente o guarda-redes. Bateu assim um recorde qualquer que não interessa nada e que nada interessa quando se vê jogar o João “Deixem-me Mergulhar” Félix. 

É muito difícil vir-se diretamente de um cozido à portuguesa para um prato de massa com frango, a fazer lembrar os meus velhos tempos da cantina do Instituto Superior de Agronomia. De uma explosão de texturas e sabores vai-se para um coisa que não sabe a nada e fica grudada no céu boca como se fosse um bocado de miolo de pão recesso, precisando de ser empurrada pelo esófago a baixo com uns golos de água. O Renan Ribeiro defendeu tudo que tinha defesa. O Ristovski esteve esforçado mas inconsequente. O Ilori fez-nos suspirar de saudades do André Pinto. O Mathieu jogou contra os adversários e contra o Ilori e o Gudelj. O Acuña esteve sempre bem, mas mal acompanhado. O Gudelj jogou contra si e o resto da equipa, tal o número de trapalhadas em que se mete e nos mete. O Wendell procurou sair com a bola e estar em todo o lado, tendo inconseguido os seus propósitos também. O Diaby atrapalhou-se e atrapalhou, mais os seus colegas do que os adversários, mas participou que é o que interessa. O Bas Dost revelou uma depressão em elevado estado de desenvolvimento que nem com uns tantos comprimidos de “Prozac” se resolve. O Raphinha jogou durante o quarto de hora inicial até deixar de entender o que se passava em campo. O Bruno Fernandes jogou contra o adversário, contra os seus colegas de equipa, contra o árbitro, contra os comentadores da SporTv, contra os seus próprios limites e ganhou.