Os jogos do Sporting não podem ser apreciados pelo futebol praticado mas como espetáculos do mais puro e simples entretenimento. A equipa do Sporting faz a sua parte mas sem a prestimosa colaboração da equipa adversária, dos árbitros e dos comentadores durante e após o jogo (?) o espetáculo não funcionaria. Este jogo contra o Boavista tinha todos os condimentos para se transformar num episódio do “Benny Hill”: uma equipa baseada num dos ancestrais princípios do futebol português do “abaixo do pescoço é canela” com um treinador patusco que entra em campo para placar jogadores adversários e na “flash interview” ou na conferência de imprensa que se sucedem aos jogos diz coisas surpreendentes e engraçadas. Quem viu o jogo não deu o tempo por mal-empregado.
Os do Sporting iniciaram a partida com imensa vontade de nos divertir e fizeram-no logo aos três minutos. Livre a favor do Boavista, corte de cabeça do Luiz Phellype para o interior da grande área, escorregão do Coates, Ristovski a disputar o lance em ajuda ao colega, bola a bater no cocuruto da cabeça de um jogador adversário e a ressaltar na canela de outro, enganando o Renan Ribeiro e colocando-nos a perder por um a zero. Não há culpados, há excelentes atores que interpretaram uma cena impossível deste guião. Os minutos seguintes trouxeram-nos as cenas do guião a que estamos habituados. O Boavista nem sequer pressionava a saída da bola da nossa defesa e concentrava os seus jogadores nos últimos trinta metros, que iam batendo em tudo o que mexia. Na linguagem da dramaturgia futebolística, o árbitro aplicava um critério largo, representando o seu papel de forma convincente, chegando à tradicional cena de ir conversar com um jogador do Boavista que tinha varrido o Acuña para o informar e para nos informar com gestos enérgicos e decididos que as coisas assim não podiam continuar. As coisas continuaram e acabou por mostrar um amarelo a um dos jogadores do Boavista, tendo mostrado logo a seguir outro ao Gudelj sem qualquer diálogo prévio, admitindo, e bem, que tinha ouvido a conversa anterior. O empate acabou por aparecer porque os jogadores do Boavista não quiseram representar pior do que os do Sporting e, por eles, os ressaltos não escolhem baliza.
O comentador da SporTv procurava encontrar uma lógica e um propósito para o que íamos vendo, explicando-nos todo e qualquer lance como algo de previsível. Não tenho dúvidas que se entrasse um javali em campo acossado por uma matilha de cães e tiros de caçadeira nos transmitiria que “já se previa”. Atento aos pormenores do jogo, que tanto podiam ser um franzir de sobrancelhas ou um ajeitar de melena, viu a meio da primeira parte um avançar de linhas do Boavista e uma pressão sobre a bola mais à frente. Não são coisas que vejam a olho nu. É necessário aparelhagem sofisticada de nanometrologia para as ver ou a um ácaro num dos borbotos do “pullover” do Vidigal. Dá a ideia que esta parte do guião é sempre a mesma, é uma cartilha, ou uma cassete como a que recorrem os partidos políticos, que à custa de se repetirem umas tantas afirmações se confunde (falta de) coerência com razão.
A segunda parte trouxe-nos persistências e novidades. Os do Boavista passaram a atirar-se para o chão mais amiúde, embora continuando a acertar forte e feio nas canelas dos do Sporting. As caneladas e os mergulhos davam origem a faltas sem distinção técnica e disciplinar, equiparando o árbitro assim aquilo que no futebolês contemporâneo se designa por “intensidade” de uns e outros lances. Com o aproximar do fim do jogo, passaram também a adoecer, enquanto na SporTv se efetuava o diagnóstico clínico e se concluía pela fadiga e desgaste físico como se, por oposição, os do Sporting tivessem jogado sentados. As oportunidades de golo do Sporting sucediam-se enquanto na SporTv nos alertavam para os perigos do contra-ataque do Boavista que ninguém viu e muito menos as suas consequências, bastando perguntar ao Renan Ribeiro se se lembra de ter efetuado uma defesa sequer.
Estava-se nesta “Crónica de uma Morte Anunciada”, quando, dentro da área, um defesa do Boavista pregou uma estalada no Raphinha. O árbitro marcou “penalty” e assistiu-se à habitual manifestação do direito à indignação, com a música de fundo da SporTv sobre a “intensidade”. Na dramaturgia como na vida, os estragos dos estalos não se medem pela vermelhidão da bochecha do atingindo mas pela ferida no mais intimo e profundo de cada um, na alma, no orgulho. Numa peça como esta o árbitro tinha de marcar “penalty” para resgatar o orgulho ferido do Raphinha. Esta não era a peça que os do Boavista pretendiam representar, como ficámos a saber pelo jornal “A Bola” do dia seguinte ao informar-nos que Jorge Loureiro, filho de Valentim Loureiro, desferiu murros na nuca de Miguel Nogueira Leite, membro do Conselho Diretivo do Sporting, sem que tivesse sido marcado qualquer “penalty”, evidenciando-se a dualidade de critérios. O Bruno Fernandes marcou o golo da ordem e se não fosse a intervenção final do treinador Vidigal mais não havia a contar sobre este jogo. Iniciou a “flash interview” como a habitual teoria da conspiração para eliminar o último sobrevivente de Auschwitz até que, entusiasmado, se referiu à injustiça do resultado perante as oportunidades criadas pelo Boavista, tendo-lhe dado uma branca quando as pretendeu enumerar.
Estas peças do Sporting têm a vantagem de se prolongarem muito para além dos noventa minutos de jogo, tal o interesse que despertam. N’ ”A Bola” do dia seguinte, um comentador (de teatro) explica-nos que houve um “penalty” perdoado ao Sporting, por falta de Acuña sobre o Perdigão, embora, a propósito da interpretação da UEFA destes lances, nos informe ao mesmo tempo que “a infração não foi óbvia, clara e evidente”. Explica-nos também que o Sporting foi beneficiado com um “penalty”, apesar de o Raphinha ter sido “tocado, no pescoço, pelo braço esquerdo de Edu Machado [… e] o contacto ter sido evidente”. Se bem o percebemos, o que é “evidente” não é e o que não é “evidente” é, nas suas próprias palavras, parafraseando às avessas o conhecido “nem tudo o que parece é”. Os comentadores vêem coisas nos jogos que não se vêem a olho nu. Ou recorrem a aparelhagem sofisticada de nanometrologia, como referi atrás, ou, então, fumam um produto que os deixa muito bem-dispostos. Se for a segunda, avisem, pois gostava de experimentar para ver os jogos mais divertido.