terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Crónica de um guarda-redes hipocondríaco

Minuto noventa, lançamento lateral a favor do Marítimo e a bola não há meio de aparecer, até aparecer no sítio errado, dentro do campo junto à linha de fundo. O guarda-redes do Marítimo desloca-se paquidermicamente para a ir recolher ao mesmo tempo que o Coates, que o empurra para que o jogo se desenrole sem mais delongas. O guarda-redes, empurrado, atira-se para o chão a espernear como se lhe tivessem arrancado o baço numa intervenção cirúrgica sem anestesia. O Coates leva o segundo amarelo e é expulso, a primeira vez ao longo de muitos anos a jogar na Europa e a segunda vez em toda a carreira. Entra a equipa médica para prestar assistência ao guarda-redes. Procura-se perceber pelas imagens exatamente de que se queixa o paciente e, de repente, percebe-se quando lhe aplicam um “spray” analgésico no cotovelo, é exatamente nesse local que tem um dói-dói. Se fossem todos como ele, não havia enfermeiros que quisessem trabalhar no SNS ou hospitais privados que pretendessem prestar cuidados de saúde convencionados com a ADSE. 

A seguir, os jogadores do Marítimo preparam-se para marcar o livre. O árbitro explica-lhes que não é livre mas lançamento lateral. A duras penas, o lançamento lateral é efetuado e gera-se mais uma confusão. Os jogadores pegam-se e monta-se o sururu do costume. De repente, percebe-se pelas imagens que o Marcel Keizer é expulso, pela primeira vez na sua carreira, o equivalente à expulsão do Schumpeter por discutir com Marx o fim histórico do capitalismo e a inevitabilidade do ou de um socialismo. Há dias tivemos um macedónio expulso por impropérios, desta vez a fava coube a um holandês que, estranhamente, não se exprime grande coisa em inglês. Vem-me à memória o Isidoro Rodrigues, um árbitro bigodudo dos tempos gloriosos do Apito Dourado, a expulsar Mirko Jozic por ter traduzido para a segunda e não para terceira pessoa do singular do presente indicativo uma exclamação em espanhol. 

Na minha cabeça tudo começa a fazer sentido: está-se em presença de uma competição organizada pela “World Wrestling Entertainment (WWE)”. Parece luta livre mas não é. Parece que os atletas arreiam uns nos outros mas não: quem bate, finge que bate, e quem leva, finge que leva. Os árbitros participam na encenação que pode envolver os mais diversos participantes, vindos do público ou dos balneários, enquanto os holofotes acompanham a sua marcha decidida para o ringue. Só é pena que, em Portugal, não entrem mulheres e os atletas não se apresentem vestidos de forma apropriada (e espalhafatosa), com fatos de banho em licra, embora o público aplauda na mesma e os comentadores também façam de conta que é tudo a sério. 

Quando se encena um jogo é muito difícil falar dele como se fosse a sério. A maior parte do tempo foi dedicado à prestação de cuidados de saúde ao guarda-redes e a assistir às suas reposições de bola em jogo. O homem faz uma defesa e lesiona-se. O homem vê uma mancha de gordura na camisola e confunde-a com um cancro de pele. Dói-lhe a cabeça e pensa que está engripado. Compreendo-o. Sou assim, como todos os homens, aliás. Somos hipocondríacos, é uma verdade. Como todos os homens, também dispõe de uma parte do cérebro que não pensa em nada. Somos dados a aparentes contemplações quando nada se está a passar na nossa cabeça. À inevitável pergunta: “o que é que estás a pensar?”, segue-se a mais inevitável das respostas, “em nada”, e as mulheres nunca acreditam. Era exatamente nesse estado que o guarda-redes se encontrava sempre que marcava um pontapé de baliza ou fazia qualquer outra reposição da bola em jogo com as mãos ou os pés. Nada se estava a passar na sua cabeça e a mulher não andava por perto para lhe fazer a pergunta da ordem, acordá-lo do torpor e mandá-lo pôr a mesa. 

O jogo foi uma encenação e a equipa do Sporting representou a propósito. Deu os habituais quarenta e cinco minutos de avanço. Entrou na segunda parte determinada. Criou oportunidades para ganhar quatro jogos. Mas uma peça é uma peça e não se pode fugir às deixas. Todos representaram bem o papel que lhes estava atribuído. O Marcel Keizer insistiu no Gudelj. O Acuña manteve o ar furioso. O Bruno Fernandes esteve em todo o lado ao mesmo tempo, rematou cruzou e assistiu. O Bas Dost andou pela área e esteve quase, quase a marcar. O Doumbia carregou a equipa com o Wendell. O Diaby recebeu mal as bolas, tropeçou nelas e virou-se sempre para o lado errado. O Raphinha serpenteou os defesas como se fossem mecos. O Coates subiu à área para as “moches” do costume. O Ristovski foi voluntarioso nas subidas e levou uma porrada, desta vez num pé e não na testa. O que é que se pode pedir mais? Se querem ver um jogo de futebol, não vão ao estádio, vão à ópera, como diz o Sérgio Conceição.

9 comentários:

  1. Arbitragem lamentável, mais uma vez, amarelos por mostrar aos verde-rubros e amarelos sempre prontos a saltar do bolso, quando se tratava de os mostrar aos verde-brancos. Mais do mesmo. Também Dost, mais do mesmo, parece que tem medo de rematar à baliza. Que saudades do "tosco" do Slimani!

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    1. Meu caro,

      O que se passou foi uma pantomina organizada pela WWE. Tente ver isso por essa perspectiva. Há pessoas que vão até à Madeira e pagam bilhete para ver isto. É porque gostam. Nós também gostamos porque vemos. Não gostamos é tanto ao ponto de gastarmos dinheiro com isto.

      SL

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  2. Caríssimo Rui:
    Nunca perco as suas crónicas, que são das poucas coisas que nos dão alegria no meio deste oceano de tristeza chamado Sporting.
    Agora, só tenho pena que não satirize uma coisa, que talvez nem se possa satirizar:
    - estamos há três ou quatro jogos à espera de uma lesão grave do Bruno Fernandes, que leva porrada de criar bicho dos adversários, sem que um cartão amarelo lhes seja mostrado;
    - fomos roubados escandalosamente no jogo da Taça do futebol feminino contra os "wannabe terceiro grande";
    - fomos roubados descaradamente em hóquei contra os vermelhuscos e a Oliveirense (vá lá, ainda assim uma vitória e um empate porque somos mesmo muito bons);

    No meio disto tudo, o rapazito que temos como presidente (com letra pequena de propósito), não só não reclama, como telefona ao trolha do Braga, explica as regras do futebol àquela sumidade que de tanto nós gosta, que é o presidente do Marítimo, e não deixa ninguém da Direcção criticar arbitragens (esta eu sei, mas não revelo a fonte).
    A minha única alegria é a de ter a certeza de estar são de cabeça, porque não votei no rapazito. A tristeza é que, entre ele e o tarado do destituído, já não sei qual o pior.

    Grande Abraço,

    José Lopes

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    1. Caro Joeé Lopes,

      Existe uma autêntica caça ao homem relativamente ao Bruno Fernandes. A situação é completamente miserável. Agora, isso não me leva a destratar o Presidente enquanto o for. Aliás, segui o mesmo registo para o BdC quando ele já tinha ultrapassado todos os limites. Ou os sportinguistas se revoltam a sério contra as instituições e põem uma agenda séria na mesa do Governo e ameaçam mesmo com consequências políticas ou andamos sempre a dizer mal uns dos outros. Os sportinguistas precisam-se de se unir para denunciar a pouca vergonha. Era importante que o Presidente o fosse capaz de fazer. Se não for este, vota-se noutro quando chegar a altura.

      SL

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    2. Caro Rui:
      Obrigado pela resposta. Devo dizer que não considero que tenha destratado o presidente. Chamar rapazito é apenar o sublinhar da sua falta de experiência, nada mais.
      Mas, posto que o blogue é seu, peço desde já desculpa, ao presidente e a si, se alguma coisa foi entendida como “ destrato”.
      E com esta me vou.
      Um Abraço

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    3. Caro José Lopes,

      Vai mas é desta vez. Volta para a próxima porque preciso de si aqui. Percebo o seu ponto. A minha experiência de vida permite-me percebê-lo muito bem. Há uns rapazes que nunca deixam de ser uns rapazes, nunca amadurecem nem ficam crescido, embora disfarcem. Nunca deixam de ser rapazolas ou garotos. Infelizmente estou rodeado deles.

      Um abraço e amigos como dantes,

      Rui Monteiro

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    4. Comentário de José Lopes:"A tristeza é que, entre ele e o tarado do destituído, já não sei qual o pior." O Destituido vociferava muito contra as arbitragens mas sem sucesso, em 5 anos ganhámos 1 Taça de Portugal,1 Supertaça e 1 Taça da Liga, muito pouco para quem, nos últimos 3 anos, contou com o Mestre da Tática, treinador com salário obsceno, mas que só vencia no clube das toupeiras, com super plantéis e "colinhos". Em conclusão, o Varandas poderá ser "fraquinho", a seu tempo se verá que resultados vai conseguir, mas o Destituído só não destruiu o clube porque nós, sócios, o destituímos atempadamente, ou melhor tardiamente.

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  3. Confesso que nos últimos tempos estes seus posts têm compensado de alguma forma a tristeza com os resultados menos conseguidos do nosso Sporting, caro Rui Monteiro.
    Isto do sermos dados à contemplações quando nada se está a passar na nossa cabeça, é claramente uma característica nossa, e razão pela qual o tempo útil de jogo no futebol feminino é muito superior.
    Agora vou ali pôr a mesa...

    SL

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    1. Meu caro,

      Tem que se relativizar isto tudo. Hoje tenho sorte: a minha mulher janta fora e posso aquecer uma coisa qualquer e comer de um tabuleiro.

      SL

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