Caros amigos (esta resulta da influência das crónicas do Nelson Rodrigues que ando a ler), no sábado, finalmente pude ver um jogo do Sporting do primeiro ao último minuto no Flávio. Na mesa e na cadeira do costume, à distância certa da televisão. Com os sportinguistas de sempre, cinco, contando comigo e com o dono do café, e contra todos os benfiquistas que ocupam o resto da sala e não se calam um segundo. No meu “habitat”, consegui ver o jogo como gosto de ver para vos puder relatar como deve ser.
O Peseiro escala uma equipa como qualquer um de nós o faria. Há um guarda-redes, quatro defesas, os mais altos jogam a centrais, e um ponta-de-lança, sendo os restantes distribuídos pelo campo de forma mais ou menos equilibrada espacialmente, três mais ou menos no meio, uns mais à frente e outros mais atrás, e dois mais ou menos nas laterais. Este equilíbrio territorial, que se baseia numa certa simetria longitudinal na disposição dos jogadores, é um bom princípio de jogo. É um bom princípio, mas o jogo tem mais que o princípio e, mesmo com todas as perdas de tempo dos jogadores do Feirense, sob o olhar complacente do árbitro, é necessário assegurar que tenha um bom meio e um bom fim, isto tudo durante noventa minutos.
Este bom princípio rendeu logo uma excelente jogada de ataque. O Bruno Fernandes desmarcou-se entre o central e o lateral do lado esquerdo, centrou atrasado, o Nani rematou de primeira contra as pernas de um defesa, a bola ressaltou para o lado onde apareceu o Acuna a fechar os olhos e a acertar com a bola numa perna do guarda-redes. Depois, bem, depois foram acontecendo coisas. Não sei descrever as coisas que foram acontecendo a não ser como coisas que são. O Battaglia pegava na bola e corria do meio para o lado direito até esbarrar em alguém e voltar para trás e passar a bola. O Acuna fazia o oposto, pegando na bola e correndo do meio para o lado esquerdo até esbarrar em alguém também e passar a bola. O desespero vai-se apoderando de um e de outro até que um dos centrais resolve iniciar a jogada de ataque, normalmente o Coates, enfiando um biqueirada para a frente ou passando a bola junto à linha para um dos laterais. O Nani e o Bruno Fernandes bem tentavam desmarcar-se para dentro ou para fora, mas a bola não lhes chegava, não lhes servindo de nada esbracejar. O Montero esforçava-se no famoso jogo entre linhas mas sem que a bola chegasse por uma vez para tabelar com um médio ou com um extremo.
Os jogadores do Feirense também não faziam nada que se visse. Demoraram a adaptar-se à nossa pressão alta um pouco caótica, não conseguindo sair com bola e limitando-se a umas biqueiradas que os centrais e o Battaglia inevitavelmente resolviam. Havia isto tudo e o Jéfferson que é um caso à parte. É irrelevante que à sua ferente esteja um jogador de carne e osso, um soldadinho de chumbo ou um jerrican, quando procura centrar a bola acerta sempre no adversário que está à sua frente.
No início da segunda parte, tudo piorou, se ainda era possível. Os jogadores do Feirense deixaram de se atrapalhar com a suposta pressão alta e passaram a dominar o jogo a toda a sela. Não criaram grande perigo porque não sabem mais e a nossa defesa também não dá abébias (o André Pinto está a revelar-se). Só que, simplesmente, deixámos de chegar à área contrária. Como é quase impossível marcar qualquer golo sem se chegar lá, o Peseiro fez o que costuma fazer e que é a única tática disponível neste momento: meteu o Jovane Cabral e tirou o Jéfferson. O acerto foi total, na entrada e na saída.
A jogar com onze e o Jovane Cabral a correr como se não houvesse amanhã, por contágio, os restantes jogadores desataram a correr também. O jogo ficou partido que é como o Battagalia mais gosta de jogar, mais de metade do relvado e meia equipa adversária ficam por sua conta. Os jogadores do Feirense deixaram de ter descanso e montamos-lhe definitivamente o cerco, passando à fase do tiro ao boneco com o Salin a encarnar no Caio Secco, guarda-redes do Feirense, e a parar todos os remates. Estava-se neste impasse quando o Peseiro, na sua cabeça, assumiu que só com um jogador que tivesse com a bola uma relação baseada no Princípio da Incerteza de Heisenberg é que seria possível ganhar o jogo. O Castaignos é o jogador que, no Mundo, mais dificuldades tem em determinar simultaneamente a posição e a velocidade da bola, às quais adiciona a tradicional dificuldade de escolha da extremidade do corpo mais adequada para a jogar.
A sua entrada foi decisiva. Bola metida em profundidade à procura da velocidade e da desmarcação do Raphinha, o defesa esquerdo corta de cabeça para o meio onde, à entrada da área, o Castaignos a recupera e a passa ao Raphinha definitivamente. O Raphinha domina-a e levanta a cabeça, percebendo que não tem a quem a passar, faz pedalada e meia e passa por fora o defesa e ganha a linha, toca de calcanhar para trás e simula que vai centrar, acabando por fazer uma cueca no defesa que apanha o Ristovski desmarcado e em grande aceleração. O Ristovski junto à linha de fundo não vai de modas e centra rasteiro de primeira para a entrada da pequena área onde aparecia o Castaignos a atrapalhar um defesa, a bola passa por ele e o Jovane Cabral ao segundo poste antecipa-se a um adversário e em esforço mete-a lá dentro. Chegados a este ponto percebe-se melhor a entrada do Castaignos: foi a sua incapacidade em determinar simultaneamente a posição e a velocidade da bola que permitiu, por um lado, atrapalhar os defesas e, por outro, a entrada convicta do Jovane Cabral. Esta incapacidade é reconhecida pelo próprio, como se viu na forma como deixou a bola para trás e entrou a toda a brida pela baliza dentro, não estorvando, assim, a possibilidade de finalização do seu colega.
O Jorge Jesus, supostamente, tinha uma ideia de jogo e era apegado a ela. A ideia era estúpida, como se viu pelos resultados, mas uma ideia é sempre uma ideia, quando, na cabeça, para além dela só se dispõe de um risco ao meio. Quanto ao Peseiro não se sabe se tem uma ideia de jogo, mas, se tem, não parece muito apegada a ela, porque nunca percebemos muito bem o que se está a passar em campo. A ideia de jogo é capaz de ser a ideia que cada jogador tem de si próprio e dos seus colegas. É uma ideia que se vai construindo ao longo do jogo. Pouco a pouco, os jogadores esperam entender-se, trocando ideias. É um “brainstorm” permanente. No final, com uma ideia, sem ideia nenhuma ou com tantas ideias quantas as cabeças, o resultado é o mesmo: uma hora de avanço concedida ao adversário e meia hora com o credo na boca. Sendo o resultado o mesmo e o ordenado infinitamente mais reduzido, podemos concluir, como qualquer economista, que estamos muito mais eficientes: o custo por golo marcado e por ponto conquistado reduziu-se e muito.