Continuo sem perceber o entusiasmo
e a divagação sobre a suposta existência de um desporto parecido com “futebol” na
Arábia Saudita e arredores. Creio não exagerar ao considerar aquela monarquia (absoluta)
uma tecnocracia despojada de qualquer verdete que a possa associar, ainda que
remotamente, a uma democracia, sem qualquer respeito pelos direitos humanos, um
local pouco recomendável onde minorias, jornalistas ou partidos políticos são
tolerados desde que não existam. Com o recurso a alta tecnologia de raio-x alguns
eleitos poderão observar a existências de senhoras em locais públicos, o mesmo
não será necessário para ter acesso a espetáculos culturais muito em voga, como
a tortura de seres humanos e sentenças de morte por decapitação,
presumivelmente com lotações esgotadas. Não pretendo ser exaustivo.
Erradamente, alguns entendidos,
pretendem ver no futebol de hoje uma “indústria
do futebol”. Após o advento sério da profissionalização e o desenvolvimento de
um negócio (ou negócios) global, principalmente a partir da década de 1990
(Premier league, por exemplo), o futebol, de facto, sofreu um processo de “industrialização”,
envolvendo a movimentação de grandes somas de dinheiro e a criação de áreas adjacentes
de produtos comercializáveis. A mercadoria diversificou-se e o espetáculo (não
confundir com o jogo) converteu-se no capital
a um tal grau de acumulação que se tornou imagem, para seguir aqui uma
linha de pensamento de Guy Debord já bem antiga.
Embora componente essencial da
corte actual que o rodeia, não podemos ver o futebol (e tudo o que o envolve)
de hoje apenas como uma indústria (de
resto, aqui um termo sem sentido), ou mesmo como fazendo parte de um processo, como
atrás referido; entendendo-o antes, segundo o signo da especulação pura, seja
esta financeira ou futebolística, num quadro diversificado de interesses que empregam
o futebol como veículo para as suas actividades,
políticas, ou simples interesses privados. A imagem do futebol assiste a projeção de outras imagens, facilitando
a transformação dos seus conteúdos, reconvertendo-os com o auxílio da muleta do
(suposto) desporto.
Sempre existiram donos de clubes,
compras e vendas, veja-se a história do futebol em Inglaterra (Elton John comprou
o Watford em 1977) e Itália. Todavia, nunca como nos últimos anos, grupos de interessados, profissionais do investimento, países e organizações,
nomeadamente, da Península Arábica e arredores, revelaram tanto interesse no futebol,
seja como patrocinadores, compradores de clubes e SADs, ou simples
investidores. Nunca como hoje, uma verdadeira trupe de influenciadores,
empresários, facilitadores, consultores e aventureiros se insinua ao serviço do futebol.
Enfim, alguns exemplos interessantes, cuja actualidade nos diverte: SAD do Boavista, de quem principal investidor, Gerárd López, era também dono do Bordéus, dois históricos afastados das competições profissionais; Evangelos Marinakis, dono de clubes como Olympiacos e Nottingham Forest, investidor (dono?) no Rio Ave, entre outros, alguém que o Sporting conhece bem; John Textor, um génio do empreendedorismo que tentou o Benfica (que pena!), dono do Botafogo, ex-Olympique lyonnais (teve de se ausentar para o clube não desaparecer), Crystal Palace, entre outros, com as incompatibilidades que se imaginam nas competições internacionais. Ou exemplares mais sérios como o City Football Group Limited ou QSI (Catar Sports Investments) donos do City e PSG, respectivamente. É clicar nos links para superficialmente ver a profundidade e a sinuosidade dos seus vastos interesses.
O Catar, um país com longa
tradição futebolística, entre outras, mais óbvias, já teve o seu mundial em 2022 (não perdi grande
tempo com aquilo). A Arábia Saudita prossegue a sua demanda (até me custa escrever
isto) de charme e limpeza da imagem, sportswashing (é assim que se diz) através de investimentos massivos (internos e externos - sem o seu dinheiro não
teria existido aquele inenarrável mundial de clubes, já que os patrocinadores interessados
eram poucos), e operações cosméticas generalizadas, tentando ocultar a realidade
do país e atrair jogadores e treinadores. Cristiano Ronaldo não é pago
principescamente apenas para jogar futebol aos 40 anos, mas para fazer parte da
imagem do futebol e do país que o agasalha,
a Arábia Saudita. O mister Jorge Jesus farta-se de elogiar o poderio da liga
saudita enquanto come peixe perto de Lisboa. Cada um ganha a vida como pode e
quer. Nada disto vale uma boa indignação.
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