“Não, não vais rematar daí?! É estúpido, nem o Ronaldo ou o João Félix, não sei bem como é que se chama. Se marcasses, valias o total das imparidades da Caixa Geral de Depósitos!”
Dia comprido e feliz. Reunião em Leiria, com almoço no Carloto, metros à frente do Regimento de Artilharia de Leiria, onde cumpri grande parte do Serviço Militar Obrigatório (SMO). À mesa, descubro, do meu lado direito, um camarada de armas, que cumpriu o SMO um ano antes e fez a recruta em Vendas Novas como eu. Contamos histórias desses tempos, ele mais bem informado e documentado, descobrindo que ambos fazíamos parte da Brigada de Aquisição de Objetivos, constituída pelos mais corajosos, aqueles que, durante a Guerra do Vietname, tinha uma esperança de vida que não chegava a dez minutos depois de iniciado o fogo de artilharia (porque o inimigo sabe que estes homens são os olhos da artilharia e constituem os primeiro alvos ou porque são vítimas de fogo amigo quando a mira está mal apontada ou os da balística não fazem os cálculos como deve ser). Descubro que o meu comandante de Vendas Novas era o atual General Rovisco Duarte, ex-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Percebi melhor como é que foi temperada a coragem e o sentido de liderança de que sou feito.
Regresso a casa embalado por um relato onde se fazia coro com os benfiquistas que estavam no Estádio da Luz: “[qualquer coisa] João Félix”, “João Félix para a esquerda”, João Félix para a direita”, “João Félix a ler o último romance de Rodrigo Guedes de Carvalho”, “João Félix a jogar PlayStation”, “João Félix beija a namorada enquanto sub-repticiamente faz deslizar a mão direita por baixo da sua camisola”. Nem quando da criação do Universo, Deus esteve em tanto lugar ao mesmo tempo a fazer tantas e tantas coisas.
“Espera lá: a trinta metros da baliza e o guarda-redes está a construir a barreira com seis jogadores! Chatice, saiu um. Espera, espera, o guarda-redes está encostado ao outro lado da barreira para tentar ver a bola. Já lá mora!”. Continuo a ver o jogo a partir deste exato momento de regresso a casa. Está a acabar. “Golo! Golo! Bem me parecia, foi um momento Vítor Baia”, lembrando-me dos tempos dourados do Canal Caveira, do Calor da Noite, da fruta e do apito, quando se considerava que o seu ponto forte era o espaço aéreo, como hoje se diz, até ir para Barcelona e vermos os catalães a cantar em sua memória: “foi um toiro que o matou, num dia de infelicidade”. Os comentadores apressaram-se a explicar-nos que não se tratou de um golo anulado porque o árbitro apitou antes de a bola entrar, detalhe absolutamente decisivo para se compreender o que se tinha passado e o que não se poderia passar a seguir, atendendo à entrada de carrinho do árbitro sobre o VAR, cortando o lance pela raiz. A esta explicação acrescentaram outra logo a seguir, sobre a necessidade do VAR verificar se o Coates tinha agarrado uma camisola fora ou dentro da área, ou fora da área mas continuando dentro da área ou na Zara do Colombo, saindo sem pagar.
Acabado o jogo, rebobino a cassete melhor do que um Sargento de Dia em Tancos.
Relativamente ao jogo anterior, passámos a jogar com mais um e o Benfica com menos um (o Sálvio), apesar de se manter a desvantagem numérica, dado continuarem o Gudelj e o Bruno Gaspar. O Marecl Keizer alterou o posicionamento da defesa na saída da bola, abrindo mais os centrais e não permitindo que um só jogador do Benfica pressionasse dois ou três de uma vez só. No entanto, o Gudelj teve de recuar mais e o Bruno Fernandes também para preencherem melhor a zona central que, com o afastamento dos centrais, se podia transformar no Deserto de Atacama. Obrigado a jogar mais recuado o meio-campo por esta razão, o Wendell ficou entregue à sua sorte, enquanto tentava pressionar sozinho ou mal acompanhado cerca de meia equipa do Benfica quando tinha a bola.
Sem tantas perdas de bola na zona central, o Benfica deixou de ter plano de jogo. Não tinha plano de jogo mas tinha o Gudelj do outro lado, que é uma outra forma de o ter não o tendo. O Gudelj abordou com a convicção do costume uma bola pinchona, tirando da jogada o Ilori que se preparava para a afastar e isolando o Salvio (não estou a brincar, estamos a falar do Salvio que todos conhecemos). O Salvio meteu a cabeça no chão e correu até aonde a vista alcançava e, ao esbarrar em alguém, passou a bola a um colega que estava à entrada da área para se atrapalhar com ela e o Bruno Gaspar, o inevitável Bruno Gaspar, e a passar para o lado onde apareceu um outro colega que se tinha começado a desmarcar pelo meio mas ainda a tempo de voltar para trás na rotunda da circular externa da defesa do Sporting, fazendo uma manobra perigosa, não originando por milagre uma colisão com o Jovane Cabral que vinha a travar prevendo o perigo. Passado o perigo de colisão, fechou os olhos aliviado e desfez-se da bola com força, numa atitude pouco correta que por pouco não ia acertando no Renan Ribeiro com consequências graves para a sua saúde. A primeira parte foi o desenlace deste súbito (des)congestionamento de trânsito e o João Félix. O João Félix invariavelmente recebia a bola, alçava ligeiramente o rabo, até o adversário lhe tocar, e efetuava um salto encarpado para a frente resultante do impulso da sua libido descontrolada, culminando, assim, com a sensualidade necessária o lance. O público assobiava os jogadores do Sporting, só apetecendo dizer: “vai lá tu fazer melhor!” (Imagino a sequência destas imagens que o Porto Canal irá fazer um dia destes até o rapaz, infelizmente, se transformar no Neymar de Carnide).
Na segunda parte, entrámos um bocadinho (pequenino) melhor e quando estávamos na nossa melhor fase levámos um (auto)golo às três tabelas. Depois de se verificar que o golo não tinha sido do João Félix, mas autogolo do Ilori, o comentador não deixou de explicar que mesmo assim resultava do alcance estratégico da jogada. Ninguém se riu e o jogo continuou. Entraram uns do Sporting e outros do Benfica, saindo outros tantos do Sporting e do Benfica, e o resto todos sabem. No final, o Benfica marcou dois golos e teve mais duas oportunidades (cabeceamento do Rúben Dias e remate ao lado do Grimaldo) e o Sporting marcou dois golos e teve mais duas oportunidades (dois remates do Wendell ao lado) ou marcou um golo e teve mais três oportunidades, no entendimento do árbitro e dos comentadores. Em Alvalade há mais um dia destes.