Os acontecimentos sucederam-se a uma velocidade tal que o jogo contra o Aves parece ter ocorrido há uma eternidade. Mas, ao acelerar dos tempos, seguiu-se a sua suspensão. A força gravitacional da pandemia sugou-nos para o seu buraco negro, não parecendo existir forma de escapar à sua atração. Escrever sobre o último jogo do Sporting é como escrever sobre o Canto do Morais: foi há tanto, mas tanto tempo que não passa de uma memória imprecisa. Noutras circunstâncias, a este jogo seguir-se-ia outro e mais outro e relembrá-lo agora seria um desperdício de tempo e energia. Não faltando tempo e energia, recupero a crónica que costumo escrever, e não escrevi, para ser lida em quarentena, quando acabámos de ver um par de filmes e de ler um par de livros e estamos na dúvida se devemos insistir em mais uma salada com o atum que comprámos por atacado.
O Rúben Amorim (RA) operou tão profunda revolução tática que se pode afirmar a existência de um antes (a.RA) e de um depois (d.RA). Um jogador do Aves pretendeu amolgar a tíbia e o perónio de uma das pernas do Wendell e foi expulso, apesar do árbitro ainda ter titubeado com o cartão amarelo, sendo corrigido de imediato pelo vídeo-árbitro. Logo a seguir, outro jogador tirou com inusitada delicadeza os calções do Wendell, procurando colocar a nu os seus expressivos penduricalhos técnicos na saída para o contra-ataque, e foi expulso por acumulação de amarelos. Em cerca de vinte minutos, uma equipa habituada a jogar com dez, viu-se confrontada com a necessidade de jogar contra dez e depois contra nove. Prisioneira do Síndrome de Estocolmo, a equipa não se encontrava preparada para jogar com as regras do futebol. Voltar a jogar com essas regras, com as mesmas regras dos adversários, não foi um processo de adaptação nada fácil.
De imediato, o RA decidiu meter o Jovane Cabral e tirar o Ristovski, que foi para o balneário amuado. O mais aconselhável talvez fosse tirar um dos centrais, mas o treinador é dos da nova geração, dos que têm ideias e princípios de jogo dos quais não abdicam até abdicarem quando caminham para o desespero. Percebeu-se a intenção: montar o cerco ao adversário, projetando ainda mais os laterais e obrigando o Vietto e o Plata a deslocarem-se das alas para o interior da área. Montou-se o cerco, os sitiados mantiveram-se firmes e hirtos e a nossa circulação de bola a passo de caracol não abria nenhuma brecha. No final, no finalzinho da primeira parte, um género de ataque (?) do Aves deixou os seus jogadores fora da sua posição habitual, o Acuña recuperou a bola e partiu com ela à desfilada, seguido de perto pelo Mathieu a quem a entregou a meio do meio-campo do adversário para a passar ao Vietto e este a rematar à barra.
Para a segunda parte, não regressou o Mathieu, entrando o Francisco Geraldes e recuando o Battaglia para a linha defensiva. A ideia terá sido a de manter mais dentro e em linha com a defesa o Vietto e o Plata em apoio ao Sporar, deixando à inteligência do Geraldes a capacidade de descobrir uma aberta, de fazer um último passe que permitisse a desmarcação no tempo certo dos avançados. O resultado foi inconclusivo, pois o primeiro golo surgiu a partir do imprevisto, do que menos se espera, do que não se treina. Numa arroubo, a equipa do Aves desenvolveu um arremedo de ataque, perdendo a bola, e os nossos jogadores tiveram um pouco mais de espaço, não remontando o cerco, passando a bola com rapidez até chegar ao Wendell, que, do lado esquerdo, a centrou para o Sporar a cabecear, à Bas Dost, e a encostar para a baliza. Logo a seguir, o Jovane Cabral centrou do lado direito e um defesa tocou a bola com o braço, fazendo “penalty”, que o árbitro prontamente assinalou. O Vietto armou-se em Bruno Fernandes e fez “game, set and match”, não rezando para a história o restante tempo de jogo.
Os adeptos do Sporting são profundos especialistas em economia e direito, devido à complexidade dos problemas e questões patrimoniais e financeiras e de direito civil e direito comercial que sempre envolvem o seu clube. Mas a sua maior especialidade é a pré-época, ciência futebolística ao alcance de muito poucos. Não há clube nenhum que tenha adeptos como nós, que compreendam de imediato, nos primeiros minutos de um jogo de preparação e pelo simples franzir de sobrolho do treinador, o que esperar da época ou do que dela resta. Este jogo de pré-época foi absolutamente conclusivo. Quando se joga com as regras do futebol e os árbitros mostram os amarelos e vermelhos e assinalam os “penalties” que devem, é mais simples vencer qualquer jogo, mesmo jogando assim-assim. De outra forma, de pouco serve a tática, os jogadores e o salário e a competência dos treinadores. Se com o RA também vêm as regras de futebol, então os 10 milhões de euros são uma pechincha.