terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Prelúdio para Munique (s)em Dó

A narrativa construída após o jogo da passada sexta-feira é de simples entendimento: o Sporting perdeu porque não ganhou enquanto o Benfica ganhou porque não perdeu. O futebol, a bola [a dita cuja], esse objeto incomodativo, só interessa na exata medida em que permite desconversar desta forma. Qual é o interesse de uma finta, remate ou defesa quando se pode dispor de um bitaite ou bojarda do José Mourinho ou da descrição das origens humildes do Rui Borges por Altino Tojal ou Soeiro Pereira Gomes? Duas experiências oníricas: de um lado, “o especial”, que fala estrangeiro e tudo; do outro, o puto ranhoso de joelhos esfolados e calções rotos, que se fez homem aos pontapés [na bola].   

O futebol enquanto luta de classes ou construção de estereótipos sociais interessa-me [muito] pouco ou nada. Prefiro a parte desinteressante, a do pretexto, a da bola e quanto a essa o jogo de sexta-feira foi o que se convencionou designar em linguagem técnico-tática por completo e absoluto aborrecimento. O José Mourinho especializou-se na retranca, na arte de defesa a toda a sela, esperando um deslize, uma abébia, uma bola vadia que permita um golo caído do céu aos trambolhões. O Rui Borges continua com o seu habitual medo de existir [é mais simples tirá-lo de Mirandela do que lhe tirar Mirandela das entranhas], porque o respeitinho é muito bonito e [também] não se brinca com Fado ou Fátima. 

Começámos bem, muito bem. Pressão alta à espera de que os matraquilhos do Benfica fizessem a sua parte. O Trubin ainda safou o primeiro remate do Luis Suárez com a biqueira da chuteira do pé direito. No entanto, ao segundo [remate], o Pedro Gonçalves enfiou-lhe uma bola escorregadia por entre as mãos e a anca, deixando-o deitado de borco. No Estádio da Luz, os adeptos do Benfica esperavam uma forte reação a este golo e os jogadores do Sporting também. Como não havia reação [que se visse], os jogadores do Sporting obrigaram os do Benfica a reagir e, assim, a vir para o ataque porfiar, como era seu dever, sua responsabilidade. 

Ora, se quem espera sempre alcança, quem porfia alcança ainda mais depressa e o Benfica empata com um golo resultante de um aprimorado acaso, de uma carambola tantas e tantas vezes ensaiada nos treinos do José Mourinho [depreende-se]. Os do Sporting tremeram e os do Benfica encheram o peito de ar e foram-se a eles [aos do Sporting, entenda-se]. O intervalo foi um alívio para as duas equipas: a do Benfica deixava de estar obrigada a continuar a atacar, o que muito a atrapalha; a do Sporting podia aproveitar para rever os vinte primeiros minutos do jogo como forma de ultrapassar o medo existencial. 

Mas o medo de existir não se cura com mesinhas, “replays” ou “slow motions”. Portugal é o país da não-inscrição, como nos diz José Gil, onde nada [verdadeiramente] acontece. Esta incapacidade de inscrição no imaginário individual [de cada jogador] e coletivo [de cada equipa] constituiu mais um belo exemplo desta característica única da portugalidade: na segunda parte do jogo não aconteceu [rigorosamente] nada. Na conferência de imprensa, o José Mourinho jura que não, mas esta é uma simples forma de inscrever a impossibilidade de inscrever, não sei se estão a compreender. O Rui Borges disfarça melhor, finge que não enfia a cabeça na areia, mas nega, não negando, a realidade ou a falta dela [o nada, por outras palavras]. 

[No sábado fui ver a exposição da Paula Rego na Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, onde acabei por tropeçar neste soneto de Alexandre O'Neill: “No céu duma tristeza cor de farda, /Uma angústia de nuvens se desenha. /O amor já morreu: que o tempo venha/ Desmantelar o que a memória guarda. /Jogai!, jogai! Quem não jogar não ganha /Nem perde. É a última cartada. /Eu aposto na vida, mesmo errada. /Talvez outro destino me sustenha. /Avião de Lisboa para o mundo, /Apaga-me a tristeza com as asas, /Tão nítidas no céu em que me afundo! /Depois desaparece atrás das casas /E deixa-me o azul, o azul profundo, /E duas nuvens de razão tocadas.” Este “post” resultou do jogo [naturalmente] e deste soneto e constitui um agradecimento aos amigos e amigas por um sábado bem passado, apesar do frango de churrasco com batatas fritas.]

2 comentários:

  1. Excelente, como sempre. O medo de existir como síntese explicativa para os inconseguimentos que podem ser a imagem de marca desta segunda temporada do (bom) homem de Mirandela por terras do Visconde. E o grande O` Neill para tornar tudo mais azul profundo, ou talvez não.

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    1. Obrigado pelo comentário, meu caro.
      O Rui Borges continua tolhido no discurso e na ação. “Do outro lado está o José Mourinho, sim, o José Mourinho, vou-lhe pedir um autógrafo”, era o que estava na cabeça do Rui Borges, mais coisa menos coisa. Do outro lado, estava o último treinador a ser despedido do Fenerbahçe, sim, do Fenerbahçe, esse colosso do futebol turco – era isso que alguém lhe devia ter explicado.
      SL
      RM

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