Nos tempos que correm, não é fácil ser adepto de um clube como o Sporting. Há muitas competições, muitos jogos e muitos adversários. Pelo meio, ainda se metem os jogos da seleção que baralham o quadro das competições do clube. Com exceção do campeonato, saber em cada momento com quem joga o Sporting, em que competição, qual a classificação e quais as expetativas só está ao alcance de um prodígio de Harvard com doutoramento em termodinâmica ou física dos meios contínuos. Antes de começar um jogo, o comum dos mortais tem que pesquisar o passado para analisar as perspetivas de futuro de forma a enquadrar o seu estado de espírito de espetador. É qualquer coisa do tipo: “Qarabag?! Quando é que ouvi falar disto? Ora deixa cá ver [barulho de desfolhar o caderno…], cá está. [barulho do cérebro a ler e a processar a informação] Hoje é para ganhar!”
Era o primeiro jogo que via orientado pelo Marcel Keizer e estava curioso para ver como é que a equipa iria jogar. Comecei a ver uns pormenores que são sempre os “pormaiores” que diferenciam os treinadores daqueles que vestem fato de treino e carregam as bolas, os coletes e os pinos para os treinos. O André Pinto tinha a preocupação de receber a bola com o pé esquerdo e até a passar com o mesmo pé, sendo mais rápido com qualquer um dos pés a passá-la no momento seguinte. A bola saía sempre pelos centrais, tendo que se desenrascar com ela mas contando com a permanente movimentação dos jogadores do meio-campo para lhes darem linhas de passe, bem como, no limite, do guarda-redes. A bola quando ia aos laterais era para dar amplitude ao jogo e gerar espaço no meio para as desmarcações e a progressão em tabelas ao primeiro e segundo toques (embora com algumas perdas de bola ainda). Aparentemente, acabou o chutão para a frente e as correrias pelas laterais. Quando se perdia a bola, procuravam pressionar de imediato vários jogadores, embora nem sempre bem, dando muitas vezes a oportunidade de os adversários tirarem a bola dessa zona de pressão e apanhar a equipa descompensada no flanco contrário. Comecei a ver um jogador de cor que estava em todo o lado ao mesmo tempo a dar linhas de passe, a receber a bola e a dar-lhe sequência com assertividade para a frente. Pensei que fosse o Diaby, mas depois vi o Diaby e verifiquei que não era. Pensei que fosse o Nani, mas depois vi também que não era. Ao fim de um quarto de hora percebi: era o Wendel.
Voltando atrás, comecei a ver o jogo com o estado de espírito adequado como se veio a verificar depois. Mal começou o jogo, o Bruno Gaspar ganhou a linha, centrou atrasado para o Bas Dost que rodopiou sobre a bola e foi agarrado por um adversário quando se preparava para marcar. “Penalty”, “slow motion”, guarda-redes deitado e bola a entrar devagarinho para permitir ao guarda-redes ter o tempo necessário para ver a sua triste figura: Bas Dost a picar o ponto à entrada da repartição das finanças onde trabalha, depois de ter sido ensinado pelo Grande Mestre da Tática. O Sporting demonstrava em campo que tinha entrado para ganhar. Mas, com o Sporting, há sempre um mas. Num ataque rápido do Qarabag, a bola vai à lateral direita, um adversário recebe-a e desloca-se para o meio, o Jéfferson não acompanha e não aparece ninguém a fechar, dando-se todo o tempo do mundo para ele meter a bola nas costas do Bruno Gaspar, onde apareceu um ciclista a amortecer com o peito para o remate vitorioso de um colega. A culpa não pareceu tanto do Bruno Gaspar, que estava a fechar dentro junto a um adversário (que veio a marcar o golo), mas do Diaby que esta a olhar para a bola e não viu e muito menos acompanhou a desmarcação pelas costas do referido ciclista.
Quando acontecem golos como este sabemos por saber de experiência feito que o nosso martírio começa naquele instante. Estranhamente, nada disso aconteceu. A equipa não tremeu e continuou a jogar o seu jogo como se nada tivesse acontecido. O Wendel vai-se a desmarcar e é derrubado à entrada da área sem que o árbitro tenha marcado falta, permitindo a saída de bola em contra-ataque do adversário. O Gudelj recuperou-a de imediato, mas com o tempo necessário para o Wendel se levantar, fazer uma tabelinha com o Bruno Fernandes, que rematou à entrada da área, fazendo a bola bater à frente do guarda-redes para o transformar num passarinho. Recuperação de bola, a equipa a avançar em bloco em tabelinhas, o Wendel a ficar isolado no meio para avançar com ela e a passar ao Nani que fez o simétrico do que costuma fazer o Arjen Robben, com a dificuldade acrescida de não ter precisado de nenhum ressalto nem de encontrar um qualquer André Almeida pela frente. Para que não se concluísse a primeira parte em beleza, o Jéfferson fez o favor de nos explicar pela enésima vez que não sabe o que anda a fazer em campo, demorando a recuperar para a linha do fora-de-jogo e permitindo, assim, a um adversário isolar-se e fazer uma chapéu ao Renan Ribeiro que não deu golo porque o Bruno Fernandes fez de pronto-socorro.
A segunda parte foi mais do mesmo. O Wendel recebe a bola de costas para a baliza à entrada do meio-campo do Qarabag, aguenta a pressão do adversário, vira-se e desmarca no flanco oposto o Diaby, que aproveita um corte defeituoso de um defesa para fintar o guarda-redes e fazer o quatro a um. Mais uma recuperação de bola, mais uma tabelinha e mais uma vez o Wendel a picar a bola por cima dos defesas e a isolar o Bruno Fernandes que fuzilou para o cinco a um. Para variar, desta vez, o Jovane Cabral corre pelo lado direito até ao bico da grande área e centra para o Diaby rematar de primeira e fazer o seis a um. Entretanto, o Marcel Keizer já tinha efetuado várias substituições, saindo o Bas Dost, o Bruno Gaspar e o Nani para entrarem, respetivamente o Jovane Cabral, o Thierry Correia e o Carlos Mané. A festa tinha acabado e pode ser que haja mais para a próxima.
É difícil encontrar a moral desta história. Um jogo é um jogo (como diria o Luís Filipe Viera, o Paulo Gonçalves é o Paulo Gonçalves e o Benfica é o Benfica) e nada mais do que um jogo. Aparentemente, depois de dois treinadores portugueses de alto coturno (Jorge Jesus e José Peseiro), foi preciso chegar um holandês para perceber que o Wendel é capaz de ser jogador de bola (há uma teoria alternativa: foram necessários meses e meses de aprendizagem com esses dois monstros sagrados da futebolândia nacional para o rapaz aprender a jogar à bola). Os pontos fortes do Sporting são ao mesmo tempo os seus pontos fracos num campeonato como o português. O Qarabag quis jogar à bola, coisa que a maioria dos nossos adversários do campeonato não só não quer como odeia quem quer. Vai ser mais difícil controlar a saída de bola do Sporting e impedir o ataque continuado, mas qualquer erro pode ser a morte do artista. É preciso pressionar melhor depois da perda da bola e ser muito mais agressivo ou, de outra forma, a equipa vai ser apanhada em contrapé na lateral contrária (sobretudo se por lá andar uma mosca morta como o Jéfferson). Há dois ganhos para já: via-se que os jogadores se sentiam confortáveis a jogar assim e se divertiam inclusivamente e, por outro lado, como o Benfica, a uma jornada do fim conseguimos o apuramento para os dezasseis avos da Liga Europa. Parece pouco mas rebobinem a cassete e vejam se com o Peseiro se faria melhor.