Quem foi ao estádio empregou mal o seu tempo quando comparado com aqueles que viram o jogo pela SporTv. Sem os comentários e o relato do Rui Pedro Rocha, o jogo não é o mesmo, sendo incomensuravelmente menores os seus motivos de interesse. Para além do que se vê no estádio, existe um conjunto de dimensões transcendentais que só com a sua conhecedora ajuda somos capazes de vislumbrar, como o dolo sem intenção ou a dialética entre a competitividade e a eficácia.
O estado de espírito antes do jogo se iniciar era o da cesteira que faz um cesto faz um cento, isto é, se atropelámos os adversários anteriores não existia razão nenhuma para não se atropelar o Aves também. Porém, mal o jogo se iniciou, começou a pairar a maldição do Peseiro. O Aves marcava bem o trio do meio-campo, os centrais não tinham linhas de passe e, proibidos que estão de enfiar umas bicas para a cabeça do Bas Dost e explorar as costas da defesa e as corridas do Diaby, as perdas de bola sucediam-se. O nervoso miudinho começou apoderar-se dos jogadores com medo cénico de jogarem em casa perante os adeptos plenos de expetativas. O jogo estava mal parado e pior ficou quando, na sequência de um livre, um central do Aves conseguiu meter a cabeça nos dez centímetros que distavam entre a cabeça do Bas Dost e a do Coates para fazer o primeiro golo.
O Aves, que estava melhor no jogo, ficou numa situação ainda mais confortável. Era só esperar pelas perdas de bola e pelo desespero para lançarem o contra-ataque, aproveitando um ciclista que jogava na frente. O dois a zero esteve para acontecer quando, depois de uma perda de bola à entrada da área do Aves, ficou aberta uma ciclovia de oitenta metros que foi explorada em dois toques até à desmarcação do ciclista que correu meio-campo até se isolar e esbarrar no Renan Ribeiro.
Estava o jogo neste preparo quando um jogador do Aves se decidiu pelo suicídio. Embalado pela canção infantil do “olha a bola Manel, olha a bola Manel, foi-se embora, fugiu”, entrou fora de tempo e enfiou uma biqueirada no Diaby. O árbitro teve de recorrer à Multiópticas para ver o óbvio ululante. Acabou por marcar o correspondente “penalty”, mas sem deixar de demonstrar dualidade de critérios. Uma entrada fora de tempo como aquela dá origem a cartão amarelo, como se viu mais tarde na expulsão do Acuña. Mas o pior não foi essa falta do amarelo. O pior foi a expulsão do José Mota por protestos. O Rui Pedro Rocha protestou muito mais e nem amarelo para amostra. Disse de tudo: que era injusto, que foi sem intenção, que a bola já nem estava lá, porque se estivesse era outra coisa bem diferente. Ao intervalo, um trio de benfiquistas que ouvi quando vim fumar um cigarro à porta do café onde estava a ver o jogo, fizeram a mesma análise com a diferença de um deles não ter a certeza se o Diaby tinha tocado a bola com a cabeça ou com o pé, embora estivesse certo que não tinha sido “penalty”. A discussão embaralhou-se com este pormenor anatómico até um deles concluir com o clássico do desabafo português: “É sempre a mesma coisa! Gostava de ver o árbitro marcar aquele “penalty” na área contrária!”
O Bas Dost marcou da mesma maneira mas com resultados totalmente diferentes: o guarda-redes ficou deitado no chão mas, desta vez, não ficou a ver a bola entrar do outro lado, tendo-se limitado a pensar que mais valia ter ficado quieto. Mal tinha desligado o “pacemaker”, como diria o meu amigo Gabriel Pedro, estava o Nani a enfiar uma bojarda com o pé esquerdo que fez a bola raspar na caneleira de um adversário e desenhar uma parábola até passar por cima do guarda-redes.
O dois a um ao intervalo dissipou a maldição do Peseiro, como se viu no início da segunda parte. Na sequência de um lançamento lateral, o Bruno Fernandes enfiou uma coxa num adversário, meteu-se numa cabina telefónica e de lá saiu calmamente para fazer um centro à meia-volta com o pé esquerdo que apanhou a cabeça do Bas Dost ao primeiro poste para o três a um. O debate na SporTv ficou intenso. “A eficácia!”, desabafava um. “A eficácia contraria a primeira lei da competitividade”, complementava o outro. Estava este par neste desalento, quando o Acuña fez o mesmo que o defesa do Aves no lance do “penalty” e levou competentemente o segundo amarelo. Na SporTv ninguém se compadeceu do rapaz, ficando tudo à conta do seu mau feitio e das suas origens geográficas. O Marcel Keizer não foi de modas, se era para jogar com dez, então melhor seria jogar com nove, tirando o entrapado do Wendel e metendo o Jéfferson. O jogo prometia ficar animado, mas o Bruno Fernandes, com uma trivela, desmarcou o Diaby no lado direito, que dominou a bola, enquadrou-se com a baliza e enfiou-a na gaveta, para grande consternação da SporTv. A eficácia voltava a dar cabo da competitividade. A partir do quarto golo, a bola ficou à disposição da equipa do Aves para fazer dela o que entendesse. Entendeu fazer que fazia até se esgotar o tempo de jogo.
Ainda nos lembramos do Dijsselbloem, Presidente do Eurogrupo, a afirmar que no sul da Europa se tem a mania de gastar dinheiro em mulheres da vida e em vinho. O José Mota deu-lhe o devido troco. Sabia da existência de treinadores de futebol portugueses, isto é, de treinadores de futebol de nacionalidade portuguesa. Não conhecia era a Denominação de Origem Protegida “Treinador Português”, mas fiquei a compreender muito bem o seu caderno de especificações técnicas: (i) estuda muito bem o adversário; (ii) concentra-se em contrariar o seu jogo independentemente de estar a ganhar ou a perder; (iii) se perder, mesmo enfardando quatro, tudo se deve a uma cabala para eliminar o último sobrevivente de Auschwitz. O Rui Pedro Rocha prefere uma outra definição: o “Treinador Português” é mais dado à competitividade do que à eficácia. “Chapéus há muitos!”, dizia o Vasco Santana.