segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Bem-vindo ao sul

Quem foi ao estádio empregou mal o seu tempo quando comparado com aqueles que viram o jogo pela SporTv. Sem os comentários e o relato do Rui Pedro Rocha, o jogo não é o mesmo, sendo incomensuravelmente menores os seus motivos de interesse. Para além do que se vê no estádio, existe um conjunto de dimensões transcendentais que só com a sua conhecedora ajuda somos capazes de vislumbrar, como o dolo sem intenção ou a dialética entre a competitividade e a eficácia. 

O estado de espírito antes do jogo se iniciar era o da cesteira que faz um cesto faz um cento, isto é, se atropelámos os adversários anteriores não existia razão nenhuma para não se atropelar o Aves também. Porém, mal o jogo se iniciou, começou a pairar a maldição do Peseiro. O Aves marcava bem o trio do meio-campo, os centrais não tinham linhas de passe e, proibidos que estão de enfiar umas bicas para a cabeça do Bas Dost e explorar as costas da defesa e as corridas do Diaby, as perdas de bola sucediam-se. O nervoso miudinho começou apoderar-se dos jogadores com medo cénico de jogarem em casa perante os adeptos plenos de expetativas. O jogo estava mal parado e pior ficou quando, na sequência de um livre, um central do Aves conseguiu meter a cabeça nos dez centímetros que distavam entre a cabeça do Bas Dost e a do Coates para fazer o primeiro golo. 

O Aves, que estava melhor no jogo, ficou numa situação ainda mais confortável. Era só esperar pelas perdas de bola e pelo desespero para lançarem o contra-ataque, aproveitando um ciclista que jogava na frente. O dois a zero esteve para acontecer quando, depois de uma perda de bola à entrada da área do Aves, ficou aberta uma ciclovia de oitenta metros que foi explorada em dois toques até à desmarcação do ciclista que correu meio-campo até se isolar e esbarrar no Renan Ribeiro. 

Estava o jogo neste preparo quando um jogador do Aves se decidiu pelo suicídio. Embalado pela canção infantil do “olha a bola Manel, olha a bola Manel, foi-se embora, fugiu”, entrou fora de tempo e enfiou uma biqueirada no Diaby. O árbitro teve de recorrer à Multiópticas para ver o óbvio ululante. Acabou por marcar o correspondente “penalty”, mas sem deixar de demonstrar dualidade de critérios. Uma entrada fora de tempo como aquela dá origem a cartão amarelo, como se viu mais tarde na expulsão do Acuña. Mas o pior não foi essa falta do amarelo. O pior foi a expulsão do José Mota por protestos. O Rui Pedro Rocha protestou muito mais e nem amarelo para amostra. Disse de tudo: que era injusto, que foi sem intenção, que a bola já nem estava lá, porque se estivesse era outra coisa bem diferente. Ao intervalo, um trio de benfiquistas que ouvi quando vim fumar um cigarro à porta do café onde estava a ver o jogo, fizeram a mesma análise com a diferença de um deles não ter a certeza se o Diaby tinha tocado a bola com a cabeça ou com o pé, embora estivesse certo que não tinha sido “penalty”. A discussão embaralhou-se com este pormenor anatómico até um deles concluir com o clássico do desabafo português: “É sempre a mesma coisa! Gostava de ver o árbitro marcar aquele “penalty” na área contrária!” 

O Bas Dost marcou da mesma maneira mas com resultados totalmente diferentes: o guarda-redes ficou deitado no chão mas, desta vez, não ficou a ver a bola entrar do outro lado, tendo-se limitado a pensar que mais valia ter ficado quieto. Mal tinha desligado o “pacemaker”, como diria o meu amigo Gabriel Pedro, estava o Nani a enfiar uma bojarda com o pé esquerdo que fez a bola raspar na caneleira de um adversário e desenhar uma parábola até passar por cima do guarda-redes. 

O dois a um ao intervalo dissipou a maldição do Peseiro, como se viu no início da segunda parte. Na sequência de um lançamento lateral, o Bruno Fernandes enfiou uma coxa num adversário, meteu-se numa cabina telefónica e de lá saiu calmamente para fazer um centro à meia-volta com o pé esquerdo que apanhou a cabeça do Bas Dost ao primeiro poste para o três a um. O debate na SporTv ficou intenso. “A eficácia!”, desabafava um. “A eficácia contraria a primeira lei da competitividade”, complementava o outro. Estava este par neste desalento, quando o Acuña fez o mesmo que o defesa do Aves no lance do “penalty” e levou competentemente o segundo amarelo. Na SporTv ninguém se compadeceu do rapaz, ficando tudo à conta do seu mau feitio e das suas origens geográficas. O Marcel Keizer não foi de modas, se era para jogar com dez, então melhor seria jogar com nove, tirando o entrapado do Wendel e metendo o Jéfferson. O jogo prometia ficar animado, mas o Bruno Fernandes, com uma trivela, desmarcou o Diaby no lado direito, que dominou a bola, enquadrou-se com a baliza e enfiou-a na gaveta, para grande consternação da SporTv. A eficácia voltava a dar cabo da competitividade. A partir do quarto golo, a bola ficou à disposição da equipa do Aves para fazer dela o que entendesse. Entendeu fazer que fazia até se esgotar o tempo de jogo. 

Ainda nos lembramos do Dijsselbloem, Presidente do Eurogrupo, a afirmar que no sul da Europa se tem a mania de gastar dinheiro em mulheres da vida e em vinho. O José Mota deu-lhe o devido troco. Sabia da existência de treinadores de futebol portugueses, isto é, de treinadores de futebol de nacionalidade portuguesa. Não conhecia era a Denominação de Origem Protegida “Treinador Português”, mas fiquei a compreender muito bem o seu caderno de especificações técnicas: (i) estuda muito bem o adversário; (ii) concentra-se em contrariar o seu jogo independentemente de estar a ganhar ou a perder; (iii) se perder, mesmo enfardando quatro, tudo se deve a uma cabala para eliminar o último sobrevivente de Auschwitz. O Rui Pedro Rocha prefere uma outra definição: o “Treinador Português” é mais dado à competitividade do que à eficácia. “Chapéus há muitos!”, dizia o Vasco Santana.

16 comentários:

  1. Fantástica crónica. Não mexo nem uma virgula.
    O Zé Mota quando é encavado na Luz e no Dragão fica sempre manso. Deve ser do ar.

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    1. Caro Francis,

      Obrigado, antes de mais. O Zé Mota é um passarão. Diz o que diz porque é mais fácil dizê-lo contra o Sporting mesmo enfardando quatro.

      SL

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  2. E no sul também se fazem adiantamentos (golos) para evitar impostos(derrotas)!!

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    1. Caro Carlos Duarte,

      O Zé Mota é do sul. Pensa que por marcar um golo vai ganhar o jogo.

      SL

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    2. Não percebi! Ou o Rui não percebeu!

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  3. O engraçado disso tudo é que quando os RP Rochas desta vida falam no "treinador português", e tanto que têm falado nos ultimos tempos, não é dos Zé Motas desta vida que eles falam. Para eles o ZM é um anacronismo, calhou este fim de semana os astros estarem alinhados.

    Mas, na verdade, não sei se o ZM é assim tão diferente de um Lito Vidigal ou de um Silas ou outro desses que por aí andam a debitar frases feitas com o ar carrancudo e impaciente tipico dos grandes pensadores, mas aquele boné laranja do Recheio é bem capaz de lhe ter limitado as opções de carreira.

    A unica pena que tenho é não termos ganho o jogo com 4 penalties inexistentes daqueles escabrosos. É que o Zé Mota, além de não ter razão nenhuma, só fala grosso contra nós. E ainda não me esqueci do que esse imbecil
    disse no final de um jogo em Alvalade em 2006.

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    1. Caro Jmonteiro,

      O Zé Mota também é da corrente do: Limpinho! Limpinho!

      SL

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  4. Foi com este magnífico post do meu caro Rui Monteiro que fiquei a saber quem é R. P. Rocha de quem nunca tinha ouvido falar apesar de o ter ouvido falar muitas vezes!
    Já tinha confessado que "vejo" futebol sobretudo por "livestreaming" o que significa que para jogos da Liga portuguesa raramente consigo escapar a transmissões pirateados da SporTv! Foi o caso de ontem! O outro de ontem chama-se Capela se a minha memória estiver correcta.
    Dito isto só me resta acrescentar que nada tenho a acrescentar a mais este texto cheio de graça como na Avé Maria!
    Devo repetir que gosto de rir e isso justifica que assista com regularidade ao Trio de Ataque onde já não é o Gobern o que fala mais...
    Foi em 2006 o jogo da mão do Ronny? Como o tempo voa!

    SL

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    1. Caro Aboim Serodio,

      Não sabe o que perde. Imagine o mais fanático anti-sportinguista depois de beber um martelos na tasca com uns amigos a assistir a um jogo do Sporting.

      SL

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  5. Mais um excelente texto. SL.

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  6. Muito bom!...ontem fui ao estádio e tive por perto um grupo de sportinguistas de mais a Sul que devem conhecer bem o R.P.R pois nem sempre terão oportunidade de vir ao estádio.Do melhor para o nervoso miudinho. SL

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    1. Caro Zé Baleiras,

      Não tinha dito que não ia mais ao estádio? Bem o tinha avisado que se não fosse lá em casa lhe arranjavam um programa alternativo para o fim-de-semana.

      Obrigado e SL

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  7. O José Mota e o Rui Pedro Rocha têm algo em comum, são ambos anti sportinguistas. O grito orgástico do último, na Sport Tv, sempre que há um golo na baliza do Sporting, é inconfundível. Por último diria que o Jefferson não será, acredito, anti sportinguista, mas quando entra em jogo o Rui Pedro Rocha fica mais perto de soltar o seu gritinho irritante.

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    1. Meu caro,

      O RPR é doente. O Jéfferson é só mal jeitoso. Os dois forma uma dupla infernal.

      SL

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  8. Caro Rui,

    Tenho tido pouca oportunidade de vir aqui comentar mas devo dizer que vale sempre a pena. Grande crónica.

    Infelizmente perdi os comentários da SportTV estando no estádio. Pelo que aqui leio foi uma pena. Terei seguramente oportunidades no futuro de colmatar esta falha.

    A vantagem de ir ao estádio foi conseguir ver a uns 80 metros uma grande penalidade que o árbitro não conseguir ver a 20 metros e que teve vários minutos para rever na TV (tantos que se esqueceu de expulsar o infrator). Ainda pensei que aquilo fosse acabar num amarelo ao Diaby por excesso de velocidade a abordar o lance.

    Mas, se me permite, a parte mais brilhante da sua crónica é a referência à Denominação de Origem Protegida “Treinador Português”. Deve ser pelo mérito do Treinador Nacional que Portugal é o país com menos tempo útil de jogo de toda a Europa.

    SL,

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