terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Angústia para o jantar

Ainda não tenho bem a certeza: se vi o jogo de ontem e foi como se não o tivesse isto ou se o não vi e foi como se o tivesse visto. Havia um jantar de trabalho que ao mesmo tempo era de despedida de um “controller” de uma organização internacional que nos inferniza a vida. Estacionei o carro e enquanto me dirigia para o restaurante consultei o telemóvel: estávamos a ganhar por um a zero. Entrei no restaurante com o Rio Ave a empatar. Na minha cabeça passou a Montanha Russa do jogo contra o Qarabag. 

Havia televisão. Sentei-me e dei uma de antissocial, não petiscando os pastéis de massa tenra, os rissóis e os croquetes, nem bebericando um Quinta da Pacheca. Entre os quinze e os vinte minutos criámos cinco oportunidades de golo, tantas como as da época passada em dois jogos contra o Rio Ave. O Bruno Gaspar centra do lado direito e o Bas Dost sem oposição falha um “penalty” (para ele) de cabeça. O Bruno Fernandes remata de fora da área ao canto inferior direito da baliza e, quando me preparava para gritar golo e me transformar num atrasado mental à frente de toda a gente, o guarda-redes defendeu milagrosamente. Canto, bola a sair da área, centro para a molhada, Coates a amortecer a bola para o Diaby enfiar uma cabeçada em salto de peixe que o guarda-redes voltou a defender. Novo canto e o Bas Dost a entrar ao primeiro poste e a cabecear ao lado. Wendel recupera a bola, deixa-a no Nani que corre com ela a olhar pelo retrovisor à espera que o Acuña o ultrapassasse pela esquerda para lhe fazer chegar a bola e de primeira a centrar ao primeiro poste onde estava o Bas Dost a encostar de cabeça para o dois a um. A jogada é magnífica e a movimentação do Bas Dost de matador, começa por se deixar ficar para trás para fugir à marcação e acelera no exato momento em que percebe que vai sair o centro do Acuña. 

Com o Sporting na frente, voltei-me para a mesa ainda a tempo de resgatar o último pastel de massa tenra. Recuperei a postura profissional e social, embora sem deixar de acompanhar pelo canto do olho o que se ia passando na televisão. Organizei-me, assim, num 4x3x3 à Marcel Keizer para conseguir responder também às exigências de um robalo, de um branco da Quinta da Pacheca e de uma conversa de circunstância. 

A segunda parte começou comigo neste preparo. O Bas Dost ainda marcou mas em fora-de-jogo. Começo a ficar ansioso quando vejo entrar o Jéfferson e o Renan Ribeiro a defender dois remates à queima na sequência de um livre, o primeiro com as mãos e o segundo com a cabeça (é o que dá ter um guarda-redes com a cabeça no lugar). Tiro o telemóvel do bolso com um ar preocupado, finjo que tenho de fazer uma chamada importante e saio do restaurante para fumar um cigarro. Consulto as estatísticas do jogo e verifico que temos vinte e três faltas contra cinco do Rio Ave. Nem as quotas da União Europeia têm o mesmo impacto no genocídio dos pescadores das Caxinas. Volto para o restaurante ainda a tempo de ver a repetição do golo do Jovane Cabral. Há entrada da área, sem balanço, o miúdo enfia uma rosca na bola com o pé esquerdo que a faz entrar no ângulo superior direito da baliza: o golo da época, para já. 

Descontraído, regresso à mesa para atacar umas “tranches” de vitela e uma fatia de pão de ló de Ovar. Pedem-me para fazer um discurso em homenagem ao “controller”. Faço-me desentendido. Insistem. Continuo a fazer de conta. O silêncio fica de cortar à faca. Percebo que ou digo qualquer coisa ou o homem não se reforma. Avanço, mas entro em falso, sem que o Xistra me mostre o correspondente cartão vermelho. Começo por dizer que um chato é um chato. Procuro recuperar dizendo que cada homem também é a sua circunstância e que um profissional da chatice tem de ser profissionalmente chato para ser competente. O ambiente não melhora. Jogo a minha última cartada afirmando que se pode ser chato e um senhor ao mesmo. O homem emociona-se e acaba tudo em bem com uma oferta de um par de cálices de Vinho do Porto do Siza Vieira. Despeço-me, dizendo-lhe para não levar muito a sério o que tinha dito e que a minha mulher dizia muito pior de mim. O homem não se ri e responde-me que a mulher é melhor do que eu. Fico contente (por ele também), porque não me ocorre casar comigo próprio. 

Regresso a casa por entre um nevoeiro cerrado. Perco-me na bruma e nos pensamentos sobre o jogo e o jantar enquanto vou ouvindo o rádio, até dar comigo a caminho de Guimarãres. Ouço o treinador do Rio Ave a dizer que a culpa da derrota é do árbitro que permitiu a marcação de uma falta no meio-campo sem apitar primeiro. Sempre prefiro um chato a um parvo

17 comentários:

  1. Oh pá! Cinco estrelas.

    P.S:Devia haver um estudo psico-sociológico sobre a quantidade de empregos, relações sociais, amorosas, casamentos e oportunidades que se perdem por nos remetermos a uma atitude anti-social sempre que o Sporting não ganha.

    SL

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    1. Caro Leão de Alvalade,

      Obrigado. Já fiz ainda piores figuras. Depois de um baptizado de um sobrinho, a minha mulher deixou de me falar durante uma semana.

      SL

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  2. Gostei particularmente da parte em que o parvo se queixou de que tudo o que vinha de fora é sobrevalorizado.

    Ainda pensei que estava a falar do Keiser, homem elogiado e apreciado pela imprensa nacional como pudemos testemunhar nas ultimas semanas, mas depois ocorreu-me que um tal de Vinicius era brasileiro e compreendi o comentário. Também me ocorreu a hipótese de o próprio ter vindo de algum clube estrangeiro.



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    1. Caro Jmonteiro,

      Podemos apreciar do estrangeiro muitas coisas, agora treinadores é que não. É ver o campeonato nacional nos últimos anos e o que se disse do Marcel Keizer sem ninguém o conhecer de parte nenhuma. Esse Vinicius devia ter ido tomar banho mais cedo, mas o tal árbitro que não apita de acordo com o parvo também se esqueceu dos cartões vermelhos em casa.

      SL

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  3. Excelente post, caro Rui Monteiro.
    Após uma vitória saborosa, com bom futebol e num terreno muito difícil, nada como ler uma crónica ao primeiro e segundo toques, e sem duplos pivots.

    SL

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    1. Caro JHC,

      Obrigado. Agora estou sempre pronto a responder ao estilo Marcel Keizer, seja numa posta ou num jantar.

      SL

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    1. Caro João Migue,

      Obrigado eu. Estamos cá para isso.

      Um abraço

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  5. Boa noite Rui,

    O OrtegaYGasset aplicado aos "profissionais da chatice". Muito bom!:):) Parabéns!

    P.S.: Graças a Deus que sempre fui do front-office, pelos vistos nunca se sabe o que pode acontecer a um "controller" num jantar de despedida... :)

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    1. Pedro,

      O homem é boa pessoa mas muito pouco interessante. Talvez seja a característica das pessoas que fazem o trabalho que ele faz. Como é que se faz um discurso de homenagem a uma pessoa assim? Não faz, como senti na pele. Não havia muito a dizer e o pouco que havia a dizer não era compreensível por alguém cuja profissão tem como requisito não ter um pingo de sentido de humor.

      Um abraço

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  6. Quinta da Pacheca? Deve ser Douro.
    Kaiser em 3 semanas mudou o cenário mas vamos com cuidado que ja vi muita coisa:perder o campeonato em 2015/16 com 86 pontos e pior JJ dizer que não percebia!!!!
    Em resumo :foi um bom jogo entre duas equipas que vestem de verde. Ficará para a história o golo de Jovane.
    SL

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    1. Caro João,

      Mudar o cenário é bom em si mesmo e, por isso, independentemente do resultado. Fica para história o golo do Jovane e a declaração sportinguista final do Fábio Coentrão (deixe-me corrigi-lo).

      SL

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  7. Do dia em que me reformei há já mais de 15 anos só me lembro que foi uma segunda feira (tal como ontem). Ontem comi um spaguétti bolognése com um copo de Montinho São Miguel e como vivo fora de Portugal esperei pelo jogo do Rio Ave-Sporting que começou às 21:15 daqui. Como sempre foi no computador que o vi se se pode dizer "ver" nessas condições.
    O relato do Rui Monteiro só me ajuda a certificar-me que vi "quase" tudo. Sou um amante do futebol holandêso/barcelónico e cheguei a pensar que havia tiki taka no ar! Bom jogo e bom treinador o Keizer. Eu e a maior parte dos holandeses pronunciam "quéiz(e)r" e irrita-me ouvir cAiser como me irrita ouvir o Freitas Lobo. Mas o Sporting ganhou e a irritação passou...

    SL

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    1. Caiser, Queizr ou Kaiser, desde que não seja Sagres... :)

      SL

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    2. Caro Aboim Serodio,

      O Freitas Lobo irrita qualquer um em qualquer língua e a falar de qualquer tema. Aliás, ele fala exactamente sobre quê?

      SL

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  8. Excelente crónica, quer na parte futebolística quer nos comentários acerca dos controllers.

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