sexta-feira, 20 de março de 2020

Entre filmes, livros e saladas de atum

Os acontecimentos sucederam-se a uma velocidade tal que o jogo contra o Aves parece ter ocorrido há uma eternidade. Mas, ao acelerar dos tempos, seguiu-se a sua suspensão. A força gravitacional da pandemia sugou-nos para o seu buraco negro, não parecendo existir forma de escapar à sua atração. Escrever sobre o último jogo do Sporting é como escrever sobre o Canto do Morais: foi há tanto, mas tanto tempo que não passa de uma memória imprecisa. Noutras circunstâncias, a este jogo seguir-se-ia outro e mais outro e relembrá-lo agora seria um desperdício de tempo e energia. Não faltando tempo e energia, recupero a crónica que costumo escrever, e não escrevi, para ser lida em quarentena, quando acabámos de ver um par de filmes e de ler um par de livros e estamos na dúvida se devemos insistir em mais uma salada com o atum que comprámos por atacado. 

O Rúben Amorim (RA) operou tão profunda revolução tática que se pode afirmar a existência de um antes (a.RA) e de um depois (d.RA). Um jogador do Aves pretendeu amolgar a tíbia e o perónio de uma das pernas do Wendell e foi expulso, apesar do árbitro ainda ter titubeado com o cartão amarelo, sendo corrigido de imediato pelo vídeo-árbitro. Logo a seguir, outro jogador tirou com inusitada delicadeza os calções do Wendell, procurando colocar a nu os seus expressivos penduricalhos técnicos na saída para o contra-ataque, e foi expulso por acumulação de amarelos. Em cerca de vinte minutos, uma equipa habituada a jogar com dez, viu-se confrontada com a necessidade de jogar contra dez e depois contra nove. Prisioneira do Síndrome de Estocolmo, a equipa não se encontrava preparada para jogar com as regras do futebol. Voltar a jogar com essas regras, com as mesmas regras dos adversários, não foi um processo de adaptação nada fácil. 

De imediato, o RA decidiu meter o Jovane Cabral e tirar o Ristovski, que foi para o balneário amuado. O mais aconselhável talvez fosse tirar um dos centrais, mas o treinador é dos da nova geração, dos que têm ideias e princípios de jogo dos quais não abdicam até abdicarem quando caminham para o desespero. Percebeu-se a intenção: montar o cerco ao adversário, projetando ainda mais os laterais e obrigando o Vietto e o Plata a deslocarem-se das alas para o interior da área. Montou-se o cerco, os sitiados mantiveram-se firmes e hirtos e a nossa circulação de bola a passo de caracol não abria nenhuma brecha. No final, no finalzinho da primeira parte, um género de ataque (?) do Aves deixou os seus jogadores fora da sua posição habitual, o Acuña recuperou a bola e partiu com ela à desfilada, seguido de perto pelo Mathieu a quem a entregou a meio do meio-campo do adversário para a passar ao Vietto e este a rematar à barra. 

Para a segunda parte, não regressou o Mathieu, entrando o Francisco Geraldes e recuando o Battaglia para a linha defensiva. A ideia terá sido a de manter mais dentro e em linha com a defesa o Vietto e o Plata em apoio ao Sporar, deixando à inteligência do Geraldes a capacidade de descobrir uma aberta, de fazer um último passe que permitisse a desmarcação no tempo certo dos avançados. O resultado foi inconclusivo, pois o primeiro golo surgiu a partir do imprevisto, do que menos se espera, do que não se treina. Numa arroubo, a equipa do Aves desenvolveu um arremedo de ataque, perdendo a bola, e os nossos jogadores tiveram um pouco mais de espaço, não remontando o cerco, passando a bola com rapidez até chegar ao Wendell, que, do lado esquerdo, a centrou para o Sporar a cabecear, à Bas Dost, e a encostar para a baliza. Logo a seguir, o Jovane Cabral centrou do lado direito e um defesa tocou a bola com o braço, fazendo “penalty”, que o árbitro prontamente assinalou. O Vietto armou-se em Bruno Fernandes e fez “game, set and match”, não rezando para a história o restante tempo de jogo. 

Os adeptos do Sporting são profundos especialistas em economia e direito, devido à complexidade dos problemas e questões patrimoniais e financeiras e de direito civil e direito comercial que sempre envolvem o seu clube. Mas a sua maior especialidade é a pré-época, ciência futebolística ao alcance de muito poucos. Não há clube nenhum que tenha adeptos como nós, que compreendam de imediato, nos primeiros minutos de um jogo de preparação e pelo simples franzir de sobrolho do treinador, o que esperar da época ou do que dela resta. Este jogo de pré-época foi absolutamente conclusivo. Quando se joga com as regras do futebol e os árbitros mostram os amarelos e vermelhos e assinalam os “penalties” que devem, é mais simples vencer qualquer jogo, mesmo jogando assim-assim. De outra forma, de pouco serve a tática, os jogadores e o salário e a competência dos treinadores. Se com o RA também vêm as regras de futebol, então os 10 milhões de euros são uma pechincha.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Soltas da semana (o pensamento em quarentena)


O Sporting ganhou ao Aves na estreia do novo treinador milhões. Parece que jogou contra nove a partir dos vinte minutos. Alguns especialistas disseram que é mais difícil jogar contra nove jogadores ou mesmo contra dez. A partir de agora o Aves e outros sucedâneos entrarão em campo apenas com dez, ou com nove jogadores de campo, dependendo da dificuldade do jogo. A coisa poderá chegar aos oito, mas apenas com a autorização da direção nacional dos jogos difíceis.

O presidente do Braga decretou uma norma onde se proíbe falar de arbitragens com efeitos imediatos, quem sabe se para assim se defender melhor do COVID-19, vulgo Corona vírus.  Esta norma vem substituir uma outra do clube que determinava ser o Sporting mais favorecido pelas arbitragens, ultrapassando o COVID-19, o Benfica, o Porto e o Limianos.

Os próximos jogos da liga serão à porta fechada, quer dizer, sem público. Temos para nós que alguns clubes continuarão a sentir-se em casa.

Os Super-Dragões decidiram apoiar o Porto no jogo com o Famalicão do lado de fora do estádio. Ficamos a saber que do lado de fora dos estádios não há jogos à porta fechada, desde que a malta lave as mãos.

A Juventude Leonina está igualmente a estudar medidas de apoio ao Sporting do lado de fora dos estádios. Frederico Varandas já se mostrou indisponível para qualquer apoio à claque nessas circunstâncias. Não sabemos se o público não terá que tirar os sapatos (ou outras peças de roupa) no exterior do estádio, durante os jogos do Sporting em casa (em estudo). 

Rui Santos continuará a comentar estes e outros casos, mesmo em quarentena.

domingo, 8 de março de 2020

Vamos precisar de muita ajuda


O anúncio de mais um treinador para a equipa de futebol do Sporting sita no nosso cérebro naquela zona das banalidades avulsas. O Sporting nos últimos dezoito meses (historicamente somos, aliás, uma referencia mundial) teve quase tantos treinadores como projetos, sendo estes apenas ultrapassados na linha da recta pela quantidade absurda de balázios autoinfligidos.

As únicas novidades acopladas a este anúncio são do domínio do mundo bancário/empresarial, onde se podem prosseguir diversas estratégias de investimento, ajustadas ao perfil de risco e objetivos de cada cliente. Se começarmos a inglesar a coisa talvez esta ganhe contornos de performance para enganar meninos. Sorry.  

A partir de determinado valor sabemos estar na presença de algo esotérico digno de uma capa da Forbes, qualquer coisa impalpável merecedora de ser discutida no tasco entre duas minis e um prato de tremoços, onde invariavelmente surge a questão: o que farias com dez milhões de euros? A resposta é óbvia: comprava um treinador.

Esse ar de resposta óbvia era o ar que trajava o presidente do Sporting na apresentação do novo treinador. A esse ar juntava-se um outro, mais agressivo, um ar de animal feroz estrábico perdido no supermercado. Quando o animal feroz estrábico perdido no supermercado começa a falar o encanto perde-se e as palavras fluem como paralelepípedos às cambalhotas encosta abaixo. O choque (mais uma vez) é inesquecível.

No dia anterior àquele momento único de apresentação do treinador milhões, um golpe de asa cujo génio está longe de qualquer explicação racional, um homem trajado de verde sentava-se para nos dar a sua última conferência de imprensa como treinador do Sporting. Esse homem tinha o ar cansado de treinador do Sporting prestes a libertar-se do jugo de tamanha empresa. A solenidade do momento exigia uma nota artística consequente com a genialidade do golpe de asa presidencial, um golpe tão bem escondido de todos que certamente fará parte dos anais de jogar às escondidas nas escolas primárias do país.  

O treinador cessante, como quem não quer a coisa, anuncia o treinador que o vai substituir. Este acto (pensado, não duvideis) é o equivalente à bofetada de luva branca que nos reconforta em prato frio. E ainda deixou uma pequena nota para o sucessor: vai precisar de muita ajuda. É ele e nós.    

Agora vamos lá ganhar esse primeiro jogo do resto das nossas vidas. 

quarta-feira, 4 de março de 2020

Não nos damos com os das roulottes e das bifanas

Ainda antes de começar, o jogo contra o Famalicão já não interessava nada. Demorei um pouco mais a descer de casa para o café onde costumo ver futebol e, quando cheguei, estávamos a perder por dois a zero. Comecei a trocar umas mensagens com alguns amigos. Estávamos todos a ver o jogo e ninguém o estava a ver de facto. Em cima do intervalo, o Coates reduz a desvantagem e envio mais uma mensagem: “Porque é que não se treinam estas bolas para o Coates de manhã até à noite?”. “Porque é que não jogamos com o Coates a avançado depois da saída do Bas Dost? Em Portugal, mais de metade dos jogos ganham-se com um avançado assim”, respondem-me. 

Ao intervalo, o Coates ainda procurou dar algum ânimo e orientações aos seus colegas, mas, mal se iniciou a segunda parte, a modorra apoderou-se deles. Insistia-se pelo meio, com dois jogadores rápidos e visionários, o Battaglia e o Eduardo, a trocarem a bola entre si a passo de tartaruga e com os restantes jogadores a assistir. O Vietto invejoso com este protagonismo intrometeu-se numa dessas jogadas, perdendo a bola e permitindo o respetivo contra-ataque do adversário que originou o terceiro golo, com um avançado a atravessar todo o nosso meio-campo como cão por vinha vindimada e a passar pelo Neto como se de um pino se tratasse. 

Ainda preocupados com a possibilidade de não nos conseguirmos derrotar, o árbitro e o vídeo-árbitro resolveram ajudar. A ajuda foi preciosa, evitando a marcação de dois “penalties” que, nunca fiando, ainda poderiam permitir a reviravolta no resultado. Os jogadores têm regras, códigos de conduta tácitos, não escritos, que cumpre respeitar. Bater no Acuña não conta, podendo-se ainda receber de brinde a sua expulsão. No entanto, quando se quer dar porrada sistematicamente num jogador adversário, deve-se variar de caceteiro: uma vez dá um, outra vez dá outro e assim sucessivamente. Compreende-se, assim, que o Acuña tenha levado meia dúzia de mocadas e o árbitro acabasse por lhe mostrar o habitual cartão amarelo, não se compreendendo é que tenha sido o mesmo jogador do Famalicão a dar-lhas. 

O Silas despediu-se com dignidade. Não se queixou de nada nem de ninguém. Disse que não conseguiu e ponto final. Aproveitou também a oportunidade para apresentar aos sócios e adeptos o novo treinador do Sporting. Em qualquer clube, costuma ser o Presidente a fazê-lo. Também neste contexto a nossa gestão revelou que está muito à frente: em Harvard é assim que se está a ensinar há um par de anos. Sim, no Sporting lê-se todos os dias a “Harvard Business Review”, somos chiques, não nos damos com os das roulottes e das bifanas.