Cena: Alvalade. Cerca do ano 2010 d.C. Dois lusos meditabundos no centro do anfiteatro vazio. Crepúsculo. Um é o JOGADOR; o outro, o TREINADOR. Estão ambos pensativos e desconcertados.
JOGADOR: Nada… Absolutamente nada…
TREINADOR: O quê?
JOGADOR: Sem sentido. Vazia.
TREINADOR: Sim, claro. Mas o quê?
JOGADOR: A nossa filosofia de jogo, claro. O que estamos nós a discutir?
TREINADOR: Ah, claro, estamos sempre a discutir a nossa filosofia de jogo.
JOGADOR: Porque não tem remédio.
TREINADOR: Reconheço que é pouco satisfatória e eu próprio estou um pouco angustiado com isso. Como diz o Freitas Lobo, temos alguns princípios de jogo, mas a verdade é que os finais têm sido mais difíceis…
JOGADOR: Pouco satisfatória??? A nossa filosofia de jogo existe? Quando se define uma filosofia de jogo, o truque é começar pela defesa. Procura-se uma defesa sólida e boa e depois organiza-se a equipa de trás para a frente.
TREINADOR: Também já experimentei isso. Saiu-me uma filosofia de jogo sem ataque. Vá lá, ajuda-me, pensa numa filosofia de jogo. Entramos em campo daqui a meia hora.
JOGADOR: Eu não. Não vou meter-me numa bodega destas. Tenho uma reputação de bom jogador a defender, alguns seguidores… Os meus fãs esperam ver-me a jogar numa posição digna do meu potencial.
TREINADOR: Deixa-me recordar-te que és um jogador faminto e sem trabalho, a quem generosamente concedi a oportunidade de reaparecer na minha equipa.
JOGADOR: Faminto, sim… Sem trabalho, talvez… À espera de reaparecer, é possível… Mas bêbado?
TREINADOR: Nunca afirmei que fosses bêbado.
JOGADOR: Pois não, mas também sou. Epa, mas, prontos, vou tentar ajudar-te. E se voltássemos a uma filosofia estruturalista, tipo losango, com o Matias em “cunha” a liderar as transições ofensivas e as assistências? Ou se adoptássemos, em alternativa, uma filosofia construtivista, tipo 4-1-2-3 ou 4-2-3-1, mas com o Vuk mais descaído sobre a direita, para garantir uma melhor basculação do bloco ofensivo?
TREINADOR: Não, nem pensar nisso. Enquanto o homem for um ser racional e criativo, eu não posso, como treinador, permitir que um jogador, qual autómato, se limite a um papel pré-definido numa única filosofia de jogo. Sabes quantas filosofias de jogo podemos utilizar com 11 jogadores, em 90 minutos e num campo com dimensões 105 m por 68 m. Pois, isso, são quase…, bem, é fazer as contas… De qualquer forma, quantas filosofias de jogo por explorar, quantas nuances tácticas para variar, enfim, são hipóteses quase ilimitadas. Em verdade vos digo: a rigidez filosófica não é adequada à natureza humana e não existe na vida real.
JOGADOR: Queria só lembrar-te que não existimos na vida real. Ou ainda não deste conta que somos apenas personagens de uma peça que está a ser representada no anfiteatro de Alvalade?
TREINADOR: É esquisito, não é? Somos apenas um Treinador e um Jogador e estamos prestes a assistir a uma obra que eu escrevi que tu interpretas e eles vieram dos arredores de Lisboa, do Minho, do Algarve, de Angola ou do Canadá para nos ver. E se os espectadores não fossem mais do que personagens de outra peça? E se houvesse alguém a vê-los? Ou se nada existisse e fôssemos todos um sonho de alguém? Ou o que é ainda pior, se não existisse ninguém a não ser aquele senhor gordo do Sector A26, Fila 12, Lugar 19?
JOGADOR: Essa é que é a verdadeira questão. E se o universo não for racional e as pessoas não forem imutáveis? Desse modo poderíamos mudar a filosofia de jogo sem termos de nos sujeitar a conceitos pré-estabelecidos. Estão a compreender?
CORO (Comunicação Social): Não, de todo. Vocês estão a compreendê-lo? (Para o público). Claro que não! Eles são um Treinador e um Jogador de futebol. Comem febras com arroz malandrinho n’”O Sapo”.
JOGADOR: Isto é absurdo!
TREINADOR: Absurdo? Mas o que é o absurdo?
(ESCURIDÃO)
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