terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Futebol, populismo e democracia

A minha experiência a escrever neste blogue tem sido muito enriquecedora, para o melhor e para o pior. As boas experiências guardamo-las para nós, encontrando-se entre elas o reconhecimento, a solidariedade e, o que parecia inimaginável, a amizade, cibernética e contextualizada por essa tecnologia, mas uma forma de amizade que preanuncia as relações virtuais do futuro (que nalguns casos são presente também pela solidão de muitas pessoas). Mas, “as famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira” (célebre citação do Tolstoi no ainda mais célebre “Anna Karenina”), e por isso as más experiências são mais enriquecedoras na sua diversidade do que as boas. 

O futebol, e o futebol português em particular, constitui o reino da intolerância. Onde devia haver respeito entre iguais apesar da diferença, há ódio entre diferentes e ainda entre os que aparentemente são iguais, pertencendo ao mesmo clube. Essa intolerância e esse radicalismo é congénito, sendo determinado em primeiro lugar pelos dirigentes, passando pelos treinadores e adeptos, e alimentado por uma envolvente mediática doentia e não menos fanática. Apesar da sua crescente importância à escala global, não conheço outro país da mesma dimensão de Portugal onde existam tantos jornais desportivos, espaços desportivos nos jornais generalistas e tempo televisivo dedicado ao futebol. 

Está-se em presença de um mal social que contamina todo o espaço público e o degrada. Os efeitos colaterais em toda a vida pública são evidentes, no debate político, por exemplo. A discussão futebolística atrai todos, especialmente as moscas. Gera notoriedade, produzindo protagonistas que podem ser exportados para outros domínios da vida política, económica e cultural. Felizmente, na política, os partidos do sistema têm conseguido cooptar alguns desses protagonistas, institucionalizando-os (dificilmente se compreende a candidatura de certos comentadores às câmaras municipais sem essa notoriedade). O problema é saber até quando estes protagonistas e as suas réplicas podem ser contidos no espaço futebolístico ou a partir da sua institucionalização no “mainstream” partidário. 

Por portas travessas, o futebol tem prestado inestimáveis serviços à democracia portuguesa, onde não têm emergido partidos populistas e extremistas à esquerda e à direita. Para mim, não têm emergido porque não é preciso, o futebol e os clubes encarregam-se de representar esses potenciais eleitores, porque eles existem, ninguém tem dúvidas (a frustração e o ressentimento estão em todo o lado). A asfixia futebolística (parafraseando umas pessoas conhecidas) não deixa espaço nem tempo para manifestações do mesmo fenómeno no espectro político. Enquanto assim for, talvez valha a pena ver futebol e escrever sobre ele. Quando assim não for, então deve-se acabar com o futebol e os clubes em nome do bem-comum. É que não vale a pena pensar que o atual estado das coisas alguma vez possa mudar.

8 comentários:

  1. O futebol é pau para toda a obra...serve a democracia já serviu a "outra senhora"

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    1. Meu caro,

      É verdade. Mas também é verdade que até o Fado foi reciclado e hoje é melhor do que no passado.

      SL

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  2. Caro Rui,

    O nosso futebol é um mapa virtual onde se pode ver bem o país, sem óculos. Confunde-se nele. É um dos seus rostos mais proeminentes.

    Um braço

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    1. Caro Gabriel,

      O problema é que nem que seja a brincar acabamos por pertencer a esse país e nem sempre nos gostamos de ver ao espelho.

      Um abraço

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  3. "O futebol, e o futebol português em particular, constitui o reino da intolerância. Onde devia haver respeito entre iguais apesar da diferença, há ódio entre diferentes e ainda entre os que aparentemente são iguais, pertencendo ao mesmo clube."

    No futebol profissional apenas uma coisa é digna de respeito, a vitória. Tudo o resto é acessório. É por essa razão que, sim, vale tudo para vencer. Aparentemente o Sporting não está disposto a fazer tudo para vencer, logo fica afastado da vitória, logo não é respeitado. Nem por nós Sportinguistas quanto mais por adversários e ... outros agentes.

    Se há uma mensagem, diferenciada, que o Sporting e os Sportinguistas querem transmitir, primeiro é preciso ganhar, depois vencer e por fim ganhar outra vez. Para isso é preciso descer muito fundo na escala de valores, nós não estamos para isso, preferimos a guerrilha interna e o fratricídio.

    Imagino, hoje, alguém do Sporting ou por ele mandatado, a sondar Luis Castro para assumir funções em Alvalade. Imagino o seu sorriso interno e a sua cara fechada, depois a resposta, assassina, "Mas vocês já têm um clube onde seja possível trabalhar?".

    Estou curioso sobre qual vai ser o posicionamento do nosso adversário de logo, se nos vai "matar", construindo um resultado histórico que nos obrigará a reagir ou se nos vai "gerir" deixando a ilusão que ainda temos algo a dizer nesta competição e talvez dando a oportunidade de alguém com responsabilidade em Alvalade dizer uma patetice absurda do género, "Ainda estamos em todas as frentes!".

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    1. Meu caro,

      O posicionamento não foi grande coisa. Eles também não são grande coisa. Nós é que não podemos ser tão maus como fomos no fim-de-semana. É difícil fazer pior do que aquilo.

      SL

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  4. "...E por isso as más experiências são mais enriquecedoras na sua diversidade do que as más". Será que é a "fome" de sucessos do SCP a fonte inspiradora dos seus textos?
    É curioso como a ideia que aqui teoriza, a relaciono com as generalidade das claques e em especial com o fenómeno Alcochete . E para o desenvolvimento do "ovo da serpente" que aqui anda, o ambiente parece perfeito.
    "Quando assim não for, então deve-se acabar com o futebol e os clubes, em nome do bem comum".
    Aqui ,acho é que o futebol e os clubes serão capazes de se reinventar ( o negócio é imenso), tal como a "economia de mercado" se reinventa para "abafar as revoluções", com a invenção da "democracia", a criação da "classe média", a "globalização e despersonalização do capital", ...etc.
    E a reinvenção do futebol já aí anda. Temo é que, por este andar, fiquemos à porta.
    Saudações leoninas

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    1. Caro S. Almeida,

      Aí está uma boa pergunta. Do que vou lendo, os blogues do Sporting e os bloggers do Sporting são os melhores, isto é, são escritos com muito mais graça. Se não fosse a nossa desgraça, não teríamos tanta graça.

      A economia de mercado e a inovação à Schumpeter são responsáveis por transformações e reinvenções como as que refere. Mas a economia, na sua formulação atual, transformada em política tende a gerar monstros e no futebol existem em quantidade apreciável.

      SL

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