sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Manual de desistência

Há uns pares de anos que a minha filha saiu de casa para estudar. Conforme vai avançando vai ficando cada vez mais longe. Liga-me, pouco, mas liga, como seria de esperar. Liga-me antes de qualquer momento de maior tensão. As circunstâncias mudam e as palavras também. O diálogo conclui-se sempre da mesma maneira: não morremos de véspera e não nos arrependemos de falhar por tentarmos, o que nos arrependemos é de falhar por nem sequer termos tentado (sobretudo por medo de falhar). O jogo de ontem, contra o Villarreal, constitui um manual de desistência. 

Começou-se por perder de véspera. A conferência de imprensa que antecedeu o jogo é a de um treinador que se derrota a si próprio e à sua equipa. O jogo não contava. Não tínhamos obrigação de o ganhar. A vida são dois dias. Cristo morreu, Marx também e a própria equipa conheceu melhores dias. A equipa não é Bruno Fernandes e mais dez. A equipa é o Gudelj. Só há Bruno Fernandes porque há Gudelj e o resto é paisagem. E o Gudelj diz que sim, esquecendo-se de nos explicar a razão para estar sequer sentado naquele local àquela hora para dizer o que disse. Quem é que o escolheu para estar ali? É com discursos destes e jogadores destes que se mobilizam os adeptos para irem ao jogo? 

A equipa entrou na expetativa, na expetativa do que o adversário ia fazer para que a expetativa se cumprisse e se transformasse em fatalidade. Biqueirada do guarda-redes para aliviar a bola, Petrovic a fazer-se mal ao lance e a enfiar-lhe uma carecada e isolar um avançado furioso que avançou até à área para se desfazer dela de qualquer maneira, transformando uma combinação cósmica numa combinação cómica de defesas atrapalhados que, à beira de um ataque de nervos, permitem a um jogador adversário marcar um “penalty” em corrida. A expetativa cumpria-se como fatalidade perante um adversário também ele na expetativa e que pretendia simplesmente esperar. Pretendia esperar e continuou à espera, agora da reação do Sporting, não mais se atrevendo a procurar criar qualquer lance de perigo. Mas nós continuámos à espera também e assistiu-se a um jogo de duas equipas à espera uma da outra, sem ninguém avisar os da casa que se encontravam a perder e o tempo estava a contar. Sem tempo, quem espera desespera, instalando-se a desesperança, dentro e fora do campo. 

Os do Villarreal limitavam-se a jogar à rabia com os do Sporting que, feitos tontos e sem avanço da linha defensiva, se limitavam a correrias sem nexo e desesperantes elas próprias. A cada correria sem propósito perdia-se convicção para a próxima, numa espiral descendente. Os extremos completamente abertos e sem apoio, estavam condenados a receber a bola em dificuldades e a jogar contra o resto do mundo entregues a si próprios. A meio da primeira parte sofre-se mais um golpe de incompetência: o Bruno Gaspar sai com uma lesão muscular, que, por não se tratar da primeira vez, nos deixa perplexos sobre a utilidade do gabinete de alta “performance”, a principal bandeira de campanha do Varandas. Nos últimos minutos, os extremos trocam de posição, passando a jogar com o pé dominante pelo lado de dentro e ficando assim mais próximos do Bas Dost e do Bruno Fernandes e deixando a linha para os laterais. As melhorias fizeram-se notar (é quase criminoso deixar um jogador como o Raphinha com golo na ponta das chuteiras a centrar bolas do lado esquerdo do ataque). 

Nestas alturas agarramo-nos sempre a qualquer coisa para termos esperança. A troca dos extremos, como coisa que é, era a qualquer coisa a que nos iríamos agarrar como tábua de salvação para vermos a segunda parte. Mas até essa tábua de salvação a que nos queríamos agarrar nos tiraram. Os extremos voltaram às posições iniciais e o Jovane Cabral ficou condenado a fazer o que todos esperam, inclusivamente os defesas. O jogo da rabia dos do Villarreal aprimorou-se, enquanto esperavam, continuando os do Sporting completamente incapazes de jogar no meio campo contrário de forma continuada. A meio da segunda parte, o Petrovic começou a avançar um pouco mais, procurando dar apoio a quem tinha a bola na zona de ataque. A equipa melhorou um poucochinho pequenino. Com os espetadores exasperados, o Marcel Keizer fez uma dupla substituição, metendo o Luiz Phellype e o Wendell, saindo o Petrovic e o Jovane Cabral. Com o Miguel Luís mais atrás, a equipa ganhou mais critério na troca de bola e ficou mais compacta. Parecia que ainda era possível, mas o Acuña resolveu suicidar-se, enfiando um soco no estômago de uma equipa que, a partir desse momento, parecia um conjunto de mortos-vivos à procura da razão de ser do limbo onde se encontrava.

A fleuma do Marcel Keizer foi chão que deu uvas. A expressão corporal trai-o, durante os jogos e nas conferências de imprensa, que começam a ser cada vez mais penosas. Há ansiedade, inquietação e nervosismo de toda a ordem. Ele sabe, como a minha filha sabe. A minha filha liga-me sabendo, espera é que seja eu a dizer-lho. Quem é que diz ao Marcel Keizer o que ele sabe mas precisa de alguém para lho dizer?

12 comentários:

  1. Caro Rui,

    É isso mesmo: o seu manual de desistência fica ao lado da (minha) banalidade da derrota: https://levezaliedson.blogspot.com/2019/02/a-banalidade-da-derrota.html. Na conferência de imprensa que antecedeu o 2-4 para o Benfica, a projecção do jogo (do nosso lado) cheirava a derrota...a desistência.

    Vivemos uma desistência in progress rumo à banalização da derrota. O jogo de ontem foi apenas mais passo.

    Um abraço

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    1. Caro Gabriel,

      Há muito conformismo. Isso e medo, medo de perder. Quando se tem medo de perder, derrotamo-nos ainda antes de jogarmos.

      Um abraço

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  2. Caro Rui,

    Tenho um filho de 3 anos e um outro de 3 semanas.

    Na sua cronica deixou-me mais triste o afastamento da sua filha que a situação do nosso clube.

    Sou um pai demasiado babado e um adepto cada vez menos interessado.

    Estou cada vez mais cansado e desiludido, cansado de ver este filme cujo fim todos já perceberam.

    Abraço e boa sorte para domingo.

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    1. Meu caro,

      Educámos a nossa filha para ser uma pessoa autónoma e independente. Semeámos e estamos a colher o que semeámos. Se ela voltasse, seria sinal de que algo não teria corrido bem. Temos saudades mas não estamos tristes por ela estar longe. Só ficamos tristes quando ela nos liga triste. Não há maior tristeza do que a tristeza dos filhos quando estão longe.

      É um pai babado e faz muito bem. É aproveitar enquanto são pequenos. Não me arrependo de muita coisa que fiz ou não fiz. Das poucas coisas que me arrependo é de todos os minutos que podia ter passado com ela e por minha culpa não passei.

      O futebol perante isto tem muito pouca importância.

      Um abraço,

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  3. O actual estado da equipa futebol do SCP faz-me lembrar a era dos treinadores pré-Marco Silva (salvo erro Carvalhal e outros). Quando a equipa se via a perder era logo um pesadelo, os jogadores bloqueavam, a equipa ia-se logo abaixo, sem garra para dar a volta, qualquer que fosse o adversário (mesmo equipas da 2ª ou 3ª divisão). Um autêntico pesadelo para os adeptos com futebol medíocre, jogadores medrosos.
    Recuámos uns 6 ou 7 anos.

    O que vale é que o SCP agora tem um presidente snob que não fala, prefere comunicados extensos que ninguém lê.

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    1. Meu caro,

      Quando temos medo de perder, começamos sempre a perder, mesmo quando está zero a zero. Quando levamos o primeiro é como se fosse uma fatalidade. É como sempre soubéssemos que isso ia acontecer que iríamos perder. Não se consegue lutar contra o destino quando acreditamos que o destino está traçado.

      SL

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  4. O melhor é telefonares ao sr
    96 0-0 1-4 0-1

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  5. Bom texto, como sempre, só espero que o manual de desistência não seja pretexto para, sem filtro, voltarmos a 2013, ou pior a fevereiro de 2018, ou ainda pior a junho de 2018; hoje é tão só o reflexo da incompetência de uns, mas sobretudo da guerrilha permanente e da estupidez desmedida que se instalou durante 5 anos e 3 meses e que nos conduziu a este mar tempestuoso que vai demorar muitos anos a ultrapassar e, seguramente, com baixas pelo caminho, mas o foco deverá ser sempre no trazer o clube à grandeza de outrora (há 30 anos que somos apenas um clubezinho, pequeno!), preocupando-se apenas e só connosco; se nos desviarmos deste percurso, belém fica próximo, e continuaremos pequenos claro está!
    JJ

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    1. Meu caro,

      Completamente de acordo. O maior problema do Sporting, hoje, é interno. O clube encontra-se partido aos bocados, sem que exista uma direção que seja capaz de o unir. Para se unir é necessário definir objetivos que nos mobilizem. Pode-se perder hoje em nome de vitórias do amanhã. Não se pode é perder hoje sem que acreditemos que amanhã será melhor. E isso não vai lá só com treinadores e jogadores de futebol.

      SL

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  6. Mais uma crónica com o seu timbre, brilhante. Falando de coisas sérias, Felicidades para a sua filha, tambem a minha mais velha foi para Londres estudar e nunca mais voltou, volta nas férias, Natal ,,diz-me : pai adoro-te(fico vaidoso) mas voltar para aqui não! Caramba concordo com ela.
    Do jogo como se dizia na Tropa, aos costumes disse NADA.
    Só uma correção, quem primeiro falou nessa "performance" foi Bruno de Carvalho, alias , muito reinvidicado pelos seus apoiantes.
    Estamos num tempo dessas coisas complicadas e ainda aparece o António Sérgio na "Bola". Caramba, joguem mas é à bola como o Cristiano Ronaldo que hoje marcou mais um.
    SL

    João Balaia

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    1. Caro João,
      Somos dois orgulhosos pais. As filhas decidem o seu futuro por si. Nós ficamos com o nosso papel de porto seguro para que não tenham medo do futuro. Portugal, hoje, não é um país para elas. É um país de velhos e para velhos, sem nenhum desrespeito porque sou velho.

      O Marcel Keizer começou por trazer essa alegria de jogar e de ganhar. Lesionava-se um, entrava o outro. Não havia medo. De repente, embrulhou-se nas suas hesitações e receios e a equipa deixou de acreditar e de confiar em si própria. É muita tática outra vez. É como diz, joguem à bola. Quando se entra em campo, não existe mais nada, é bola e mais nada.

      SL

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