segunda-feira, 8 de abril de 2019

O completo e absoluto nada

Ontem, no jogo contra o Rio Ave, aconteceram três golos e mais nada. Perante este não acontecimento, o que se pode dizer? Nada ou escrever sobre o nada, transformando-o em alguma coisa? Vi o jogo no habitual café da esquina. Lembro-me dos golos e de uma entrevista da Maria de Lurdes Modesto sobre a gastronomia tradicional portuguesa, que li na revista do Jornal de Notícias enquanto (não) via o jogo. Faz sentido uma crónica em jeito de entremeada em que a seguir a cada camada de Bruno Fernandes se acrescenta outra de Bacalhau à Braz, decorando-se o prato com duas azeitonas de Wendell e de Luiz Phellype? Mesmo que fizesse, seria sempre insossa. 

O Keizer tem aprendido e não é pouco. Contra equipas mais atacantes, engendrou um sistema em que o Borja faz alternadamente de terceiro central e de defesa esquerdo, conforme equipa tem ou não a bola. Contra equipas que jogam mais à defesa, deixam-se dois defesas centrais e a construção de jogo passa sobretudo por eles e pelo limpa-para-brisas do Gudelj. A bola é trocada entre os jogadores a dez à hora, até o Mathieu fazer um passe tenso para a esquerda ou recuar o Wendell para a receber e avançar com ela, desbloqueando-se o jogo ofensivo. Esta construção de jogo envolve tantos jogadores que os sobrantes estão condenados a morrer de solidão entre os adversários. Este modelo de jogo entedia os jogadores, entedia-nos a nós, espetadores, e chega a entediar qualquer equipa adversária que não tenha ingerido umas doses de ansiolíticos. 

O jogo iniciou-se sob estes augúrios, esperando-se assim mais uma noite longa. No entanto, depois de um canto a favor do Rio Ave, o Bruno Fernandes ganha a bola ao primeiro poste, sobrando para o Diaby a passar ao Luiz Phellype que desmarca o Wendell do lado esquerdo. O Wendell arranca com a bola e o Diaby, o Acuña e o Luiz Phellype partem à desfilada, parecendo mais uma turba depois de um arrastão na Costa da Caparica ou em Copacabana. O Wendell passa em profundidade para o Acuña tocar na bola e ainda a ajeitar melhor para o Luiz Phellype que tem todo o tempo do mundo para procurar o seu melhor pé e a encostar para a baliza, enquanto o guarda-redes permanecia de cócoras. Depois de doze minutos em que nada acontece, acontece o primeiro golo. Depois de mais de vinte minutos sem nada acontecer outra vez, o Bruno Fernandes rouba a bola ao Fábio Coentrão, centra-a para o Luiz Phellype a cabecear ao lado, aparecendo um central a destempo a abalroá-lo. “Penalty”, Bruno “Lampard” Fernandes a fazer a paradinha do costume, o guarda-redes a resistir à tentação de adivinhar o lado para onde se dirigiria a bola e a atirar-se tarde para o chão quando ela lhe foi rematada para o seu lado esquerdo. Mais um quarto de hora sem nada acontecer e as equipas vão para intervalo com o Sporting a ganhar por dois a zero. 

A segunda parte inicia-se sem nada acontecer e depois de mais oito minutos em que nada acontece, acontece o terceiro golo: o Acuña desmarca o Bruno Fernandes pelo lado esquerdo num lançamento lateral, que vai até à linha, avança para a área, levanta a cabeça, espera que o Wendell apareça na zona frontal para lhe passar a bola e este a enfiar na gaveta do lado direito da baliza. Depois, bem, depois não aconteceu nada até ao fim do jogo ou não aconteceu nada daquilo que nos leva ao futebol: remates, defesas, oportunidades de golo, enfim, emoção. Em cada canto a favor do Rio Ave, o Rúben Semedo ia à área contrária para abraçar o Coates. O Fábio Coentrão ia falando com os seus ex-colegas para averiguar da possibilidade de voltar. O Diaby deixava sistematicamente a bola para trás de forma a procurar dominá-la com o calcanhar. O Joavane Cabral revelava idêntica inconsequência mas com perfil técnico mais apurado. O Bruno Gaspar inconseguia todas as tentativas de contra-ataque. Entretanto, a equipa do Rio Ave mantinha-se impassível. Os jogadores trocavam a bola ao primeiro toque no meio-campo, nem atacando nem defendendo. Ao mais pequeno sinal de desequilíbrio da defesa do Sporting, atrasavam a bola para reiniciar o ataque, fazendo lembrar as pausas da nossa equipa de andebol para sair o Carneiro e entrar o Ruesga. O jogo concluiu-se com todo o “fair play”, sem que o árbitro mostrasse qualquer amarelo.

Este jogo fez-me lembrar um discurso do Eduardo Cabrita, Ministro da Administração Interna, que ouvi há uns tempos: depois de uma hora de vacuidades não me lembrava de rigorosamente nada. Estes jogos e esses discursos têm o objetivo de apagar a memória. Apagam a memória enquanto nos deixam vagamente entorpecidos e dispostos a defender a paz entre os homens. Não tenho dúvidas que o Dalai-lama irá utilizar a gravação deste jogo nos próximos “workshops” que realizar.

11 comentários:

  1. Caro Rui Monteiro,
    Bem sei que a sua crónica do jogo de ontem é uma caricatura, mas o jogo não foi assim tão vazio como qualquer discurso do Sr. Ministro Cabrita.
    SL

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu caro,

      Os meus textos são sempre irónicos, uma vezes mais outras menos, e portanto este também não deixa de ser uma caricatura. O Sporting jogou quanto baste e o quanto baste deu para ganhar por três. O adversário exigiu muito pouco mas disso o Sporting não tem culpa. Evidentemente, nada é tão nada como os discursos do Eduardo Cabrita.

      SL

      Eliminar
  2. Esta crónica (?) é verdadeiramente nada. Devia ter optado pela leitura integral da revista.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Rui,

      está bom como sempre. Continue.

      Um abraço

      Eliminar
    2. Caro desconhecido,

      Não há nada como o nada do desconhecimento. Li a revista toda. Retive a entrevista como retive do jogo os golos. Do resto, da revista e do jogo, não retive mais nada. Neste blogue para se ler não se precisa de comprar um gamebox. Lê quem quer e e quem gosta. Quem não quer e não gosta tem imensas alternativas, nomeadamente a de não se dar ao trabalho de ler.

      Eliminar
    3. Obrigado Pedro. O jogo de ontem deu para descansar o coração depois do jogo da taça. Mas mesmo para descansar podia haver mais um ou outro motivo de emoção.

      Um abraço

      Eliminar
  3. Em Alvalade estava frio, depois do grande golo de Wendel deu a madorra.
    Agora a sério, nos últimos 9 jogos 8 vitórias, 1 empate na Madeira; mandámos borda fora da tacinha, como eles dizem, os vizinhos do outro lado. Sorte não termos apanhado o Pinheiro no apito e o Ferrari no VAR.
    Keizer mandou a tropa descançar e substituiu os lesionados e à beira do 5º amarelo. O Homem ainda dá um desgosto aos que desde o início o querem ver pelas costas.
    Ja me esquecia : um dia os meu netos vão dizer eu vi jogar Bruno Fernandes.
    SL

    João Balaia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro João,

      Depois do golo do Wendell, o jogo foi uma completa chatice. Os jogadores do Rio Ave faziam que faziam mas nem uma jogada de perigo para amostra. Nós íamos gerindo o jogo e os jogadores. De vez em quando, ainda se tentava o contra-ataque mas o Bruno Gaspar ou o Diaby arranjavam maneira de o desperdiçar.

      O Sporting jogou o quanto baste e o quanto baste até deu para marcar três e não sofrer nenhum. Mesmo assim, nunca se dá o tempo por mal-empregado quando joga o Bruno Fernandes. Se não houver outra razão para ver um jogo do Sporting, essa basta. Como diz, serão estes jogos e golos que iremos contar aos netos.

      Um abraço,

      Eliminar
  4. Para mim foi um fim de semana tranquilo! Só tinha dois jogos no programa que respeitei rigorosamente: o Barça-Atlético e o Sporting-Rio Ave. Sabia que a RTPi transmitia o Feirense-benfica mas adivinhava um jogo entre o último e um outro desgastado de tanto cheirar a bola uns dias antes. Enganei-me !
    Agora, e depois de ter lido muito, já vi alguns lances que boa parte das TV's não ousam transmitir e só me apraz dizer que o futebol português anda pelas ruas da amargura! E lamento...que é a única coisa que posso fazer sem ser insultado.
    Noto que desde o trio de Ataque ao Golo RTP todos andam concertados a tentar vender o Bruno Fernandes seja a quem for. Calma jornalistas de meia tijela! O Bruno Fernandes é muito bom em Portugal mas já esteve lá fora e sabe bem o que custa ser tão bom noutras ligas.

    SL

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Aboim Serodio,

      O jogo do Benfica contra o Feirense foi a (falta) de vergonha final. Depois do que aconteceu, ainda alguém acredita no futebol português?

      Por vontade dos comentadores habituais, o Bruno Fernandes já tinha emigrado. Os elogios só têm esse objetivo: verem-se livres dele. No entanto, como diz e muito bem, noutros campeonatos há muito melhores jogadores e não terá uma equipa a jogar para ele e ele como a principal estrela. Não tenho dúvidas que continuará a ser um grande jogador em qualquer campeonato. Tenho dúvidas é que seja uma estrela como é hoje no Sporting e no campeonato nacional.

      SL

      Eliminar
    2. Meu caro Rui,
      Compreendeu-me em absoluto e nem agradeço!
      Um pouco off-topic quero dizer que Jacques Brel teria completado hoje (8 de Abril) 90 anos se fosse vivo, ele que faleceu aos 49! Proibido em Portugal eu comprei um dos seus discos (45 rpm) numa das primeiras vezes que saí de Portugal em 1966 e, depois disso, nunca mais o larguei. Só o Zeca Afonso lhe é igual na minha maneira de ver e nenhum deles gostava de futebol! Eu ainda o suporto mas não quero que me comparem a nenhum deles. Também foi ídolo meu o José Travassos mas era no tempo de José Águas e já nesse tempo urgia não valorizar o não devido!
      Espero dormir bem e desejo o mesmo ao resto dos leitores do "A Insustentável..." sportinguistas ou não..
      SL

      Eliminar