segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Um razoável Bruno Fernandes na escala de Bruno Fernandes a fazer de Bruno Fernandes

Estou farto de ver jogar o Sporting. Mas estou ainda mais farto de ver jogar (ver jogar é uma forma de dizer) os nossos adversários. Em cerca de um mês, com o jogo de ontem, foi a terceira vez que vi jogar o Feirense, uma equipa cujo melhor jogador (de futebol) não só tem pinta como constitui também o seu melhor praticante das “Mixed Martial Arts”. A tática do Feirense assenta muito neste jogador e nessa mistura, não de artes marcais, mas de modalidades, de futebol com artes marciais e vice-versa. Na primeira parte, o futebol jogado como artes marciais e as artes marciais praticadas com bola constituíram os modelos de jogo que levaram a melhor. 

Nem começámos muito mal. No entanto, a mistura de que falava impôs-se rapidamente e o(a)s menino(a)s do Sporting começaram a chamar pelo pai. O pai não lhes acudiu, ficando-se por um ou outro cartão amarelo. Compreendo-o. O que não compreendo é que seja, ao mesmo tempo, defensor de que o “futebol não é para menino(a)s” e permita um ritual de acasalamento desse melhor jogador do Feirense ao Bas Dost durante a marcação de um canto, tendo marcado falta ao Bas Dost por não ter correspondido ao assédio. Se calhar até o compreendo, não o compreendendo. Há uns anos atrás, quando era miúdo, andei atrás de uma rapariga da mesma forma, embora tenha demorado menos tempo e a rapariga tenha fugido num espaço mais curto até aparecer o pai dela e marcar falta, não a ela mas a mim. Ontem, senti-me resgatado, redimido, fosse o pai dela este pai e o meu futuro teria sido outro. 

Esta mistura de modalidades e de artes marciais deu origem a uma mistura de equipas. Os jogadores do Sporting participavam nas jogadas dos do Feirense e os do Feirense participavam nas dos do Sporting. Praticou-se assim um género de Caldo Verde à moda do Minho: uns trouxeram as couves e a panela, os outros o chouriço e a broa. Umas das melhores malgas desse caldo verde acabou com a bola dentro da nossa baliza. O Ristovski passa a bola a um jogador do Feirense, que a passa ao Ilori, que a passa a outro jogador do Feirense, que a passa ao Coates, que chuta contra ele e o Renan Ribeiro cede canto quando a bola ia para fora. Canto marcado, bola ao primeiro poste, cabeceamento de um jogador do Feirense e o Renan Ribeiro embrulhar-se com um adversário e a meter-se dentro da baliza com a bola, protagonizando um “momento Vítor Baía”, mais recentemente reclassificado de “momento Svilar”. Não é propriamente um “momento Svilar” pelo facto de o árbitro não ter cortado o mal ou o bem, dependendo das perspetivas, pela raiz, recorrendo ao VAR, concluindo-se, assim, que até a roubar os nossos adversários somos roubados. A acabar a primeira parte, os jogadores do Feirense resolveram participar num jogada dos do Sporting, revelando elevados níveis de reciprocidade. O Wendell passa ao Bruno Fernandes, o Bruno Fernandes passa ao Acuña, o Acuña segura a bola um pouco até o Borja se desmarcar pelo lado esquerdo para um centro ao primeiro poste e uma carecada no Wendell, com um jogador do Feirense a meter a mão à bola e a metê-la na sua baliza, corrigindo uma má finalização do jogador do Sporting e demonstrando que amor com amor se paga. 

A segunda parte não tem história ou tem a história dos golos, porque nem sequer me apetece escrever mais sobre este jogo. O Ristovski desatou numa correria pelo lado direito sem que ninguém lhe aparecesse ao caminho, chegado à entrada da área passou a bola ao Diaby e desmarcou-se para a receber mais à frente, o Diaby não lhe fez a vontade e virou para dentro e centrou para a cabeça do Bas Dost que não lhe chegou, permitindo uma cabeceamento em salto de peixe do Bruno Fernandes. Livre à entrada da área do adversário, grande sarrabulho (ou caldo verde, como se quiser) entre os jogadores do Sporting e os do Feirense para ver quem é que metia mais gente na barreira para tapar a visão do guarda-redes, remate do Bruno Fernandes e a bola a entrar sem que ele se mexesse, evitando fazer a triste figura do Svilar. À saída da área do Feirense, biqueirada até à entrada da área do Sporting, onde o Borja e o Ilori em vez de meterem água resolveram aprimorar e fazer um número de natação sincronizada para isolar um avançado búlgaro que marca. Pior do que sofrer um golo do Feirense é sofrer um golo de um avançado búlgaro do Feirense. Estranhamente, os jogadores do Feirense em vez de enfiarem mais uns tantos biqueiros na bola para dentro da nossa área, meteram um jogador bom de bola, que acabaram de contratar ao Leixões, passando a dispor de uma ideia de jogo e deixando sem sobressaltos a nossa defesa. 

Na sexta-feira, fui ver o “Correio da Droga” do Clint Eastwood. É um filme razoável na escala Clint Eastwood, com o Clint Eastwood a fazer de Clint Eastwood, como de costume, e a representar a América de Clint Eastwood. No final, redimem-se todos: o Clint Eastwood, os bons não são tão bons assim e reconhecem o mau que há neles, os maus não são tão maus assim também e reconhecem o seu lado bom, sobrando a honra e o prazer das coisas simples, a família, as flores e as sandes de carne assada. Neste jogo, tivemos o Bruno Fernandes a fazer de Bruno Fernandes, atingindo um nível razoável na escala de Bruno Fernandes, correspondendo a um estratosférico na escala de qualquer outro jogador. No final, redimem-se todos também: o Bruno Fernandes consigo próprio, o Marcel Keizer das suas hesitações e contradições e, até, o Gudlej da sua pose Roger Moore que, após qualquer zaragata a meio do campo, sai sempre de “smoking” sem uma ruga ou uma ponta de pó em direção ao casino mais próximo onde engatará a miúda mais enigmática e gira que trabalha para os maus e se converte à salvação da humanidade.

4 comentários:

  1. Hehehehe!

    Caro Rui, ocorreu-me que o Gudelj tem cara de Jigsaw, mas a personalidade de um candidato ao Prémio Nobel da Paz. E é nesta contradição que se move no campo, sempre preocupado em desfazer a primeira má impressão que causa no adversário directo.

    Continuação de (muito) bons textos!

    Abraço

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    1. Caro Pedro,

      O Gudelj tem qualquer coisa de Carlos Manuel, quando passou pelo Sporting no final da carreira. Insistia em receber a bola do guarda-redes, recuando para o efeito. Recebida a bola, fitava o horizonte e qualquer um de nós pensava que estava a ver o que nós, comuna mortais, não víamos e dali sairia um passe que isolaria um colega. Mas não, depois desse ritual voltava a passar a bola ao guarda-redes ou ao colega do lado.

      O Gudelj faz o mesmo, mas a diferença está no olhar. Falta o olhar no infinito, local só alcançável pelos predestinados. O passe para trás ou para o lado é o mesmo.

      Um abraço,

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  2. Caro Rui,

    Obrigado pela sua crónica. Fantástico!

    Dei por mim a pensar naqueles filmes sobre livros que já lemos e que adoramos, em que os filmes acabam por 'estragar' o livro. Neste caso fiquei com pena de ter visto o jogo na TV. Está muito, muito melhor retratado na sua crónica (e poupava-me uns 90 minutos de frete).

    Por fim um obrigado também ao Bruno Fernandes. Sem ele nada disto seria possível!

    SL

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    1. Obrigado João!

      O jogo foi mau, tão, tão mau que qualquer "post" seria melhor. Como diz, salva-se o Bruno Fernandes que nos vai salvando de aflições ainda maiores.

      SL

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