quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Um amigo, uma frase batida

Vou falar de um amigo. É difícil falar de coisas simples sem parecer piroso. Vêm-nos à memória frases batidas. O Sérgio Godinho inventou-as e a minha geração descobriu-as com as suas canções, percebendo, assim, o que sempre esteve à sua frente. 

O Agostinho é um amigo, dos pouco, muito poucos que a vida me proporcionou. Conhecemo-nos em Lisboa, no Instituto Superior de Agronomia. Eu estudava agronomia e ele arquitetura paisagista. Anos depois, reencontramo-nos em Braga, onde passámos a viver. Sou padrinho da sua filha do meio, a Carolina, a melhor amiga da minha filha Ana. 

Agora vemo-nos menos. Foi viver para Chaves, a sua terra natal. Encontramo-nos para um almoço ou um jantar e telefonamo-nos uma ou outra vez. Como sempre acontece com os amigos, cada reencontro é o regresso a uma conversa inacabada. Costumo enviar-lhe as minhas crónicas, mas raramente falamos sobre elas. O futebol interessa-lhe mas não muito. Há dias enviou-me um breve texto sobre essas crónicas. Não o conseguia fazer no blogue. Pediu-me para o fazer. É esse texto que vos deixo. Este texto é o texto de um amigo. Diz mais sobre a amizade do que sobre as crónicas. 

Eduardo Lourenço escreveu: «A cultura não tem outra realidade que a do diálogo que os atores dela - os poetas em sentido largo - travam entre si». 

Atrevo- me a proclamar que aquilo que designamos por cultura, pode ser um veículo transmissor do que contribui para dilatar o nosso espaço de vida e que concorre para poder acontecer nalgum sítio de nós, um mundo onde dantes não existia nada. 

De facto, a cultura não é só o passear de uma biblioteca debaixo do braço, ela é constituída fundamentalmente por um conjunto de ferramentas e códigos que nos permitem ler e compreender o outro e o mundo que nos rodeia, compreensão essa onde os livros desempenham um papel fundamental. 

Sobram os dedos das mãos para contar as vezes que fui a um estádio de futebol, embora vibre com os golos da equipa Portuguesa e com alguns do Porto.

Essencialmente, para mim, o futebol não era muito mais que o diálogo quase sempre anedótico e repetitivo, às vezes aviltante, que os seus protagonistas estabelecem entre si. Considerava-o, fundamentalmente, uma atividade mercantil muito lucrativa para alguns e manipulada em função do lucro. Que era pouco mais que a invasão do espaço radio-televisivo com horas e horas de cansativos e intermináveis enredos. 

Descobri um admirável mundo novo através das crónicas do Rui Monteiro. Descobri que o futebol era alguma coisa. Que a minha visão sobre o assunto era profundamente redutora e limitada. Que no fim de contas, existe uma narrativa aglutinadora e um conteúdo lógico que explica essa coisa. Que afinal e embora sendo um jogo, a sua componente estética pode extravasar a sua dimensão terrena e que a sua componente estratégica se pode assemelhar à demonstração de um teorema. Que não podemos ficar reduzidos a ver só a parte negativa da coisa. Que é preciso aprender a ler antes de fazer juízos. 

Descobri que afinal o futebol tem potencial para quase poder ter alguns dos atributos da poesia e da música. Descobri que se pode escrever sobre ele utilizando o conhecimento doutros contextos. Descobri que até faz sentido incluir na escrita sobre o futebol, informação e conhecimento de outros saberes que quase transformam esta literatura sobre o futebol numa atividade “cultural”. Descobri que se pode escrever sobre futebol como quem escreve um ensaio. Nesse sentido, posso assegurar que sou hoje menos ignorante e portanto mais culto, porque compreendo agora um bocadinho daquilo que não sabia sequer que existia. 

Claro que há quem continue a pensar que o futebol não deixa de ser o “outro” futebol, só porque o Rui escreve sobre ele com uma linguagem poderosa, rica, esteticamente sedutora e apelativa. Mas, mesmo esse outro lado, também é descrito, nas suas crónicas.

Este texto serve também para celebrar um daqueles números redondos dos blogues, dos milhões de leituras e visualizações. Lembra-nos que esses milhões de pouco servem se não se tiver um amigo de carne e osso, que não se troca esse amigo por milhões, quaisquer milhões. Que me dizem?

14 comentários:

  1. Digo que o Rui é um homem de sorte! Merecida, sem sombra de dúvida, mas sorte! Um amigo não calha a todos, nem todos os dias...
    SL

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    1. Caro Álamo,

      É bem verdade o que diz. É uma sorte.

      Abraço

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  2. Atentem, amigos, sobretudo no princípio do texto! Cultura! Esse animal tão esquivo!... E, atentem também, amigos, no que representa a reflexão que se mostra no texto no que ao desporto e ao futebol em particular diz respeito! Se calhar!...

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    1. Meu caro,

      Como todas as atividades humanas o futebol é uma forma de expressão cultural. Esse é que deve ser o olhar.

      SL

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  3. ...guardei um amigo qué coisa que vale milhões, Portanto, hoje soube matanto, ...hoje soube mapouco
    Cum brilhozinho nos olhos (que só veêm verde....)

    Particular abraço para o amigo do Rui Monteiro!

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    1. Caro Aboím Serôdio,

      Podíamos ficar o dia todo a cantar Sérgio Godinho. Grande abraço.

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  4. Parabéns Rui não é fácil ter um amigo destes - guarda-o bem é o maior tesouro.

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  5. Sobre a amizade, palavras para que? As vezes eles (os amigos) quebram rotinas e ficamos suspensos na contestaçáo que há sempre o que vale a pena.
    Sobre o futebol sempre o vi como algo de que me socorro quando pretende olhar ou mergulhar na vida. Como um espelho. Olhei BC quase como um objecto de estudo, ficando fascinado sobre como o futebol pode influenciar o cérebro e o comportamento. Procurei na net, cientistas que estudavam os conflitos cerebrais entre os impulsos e a razáo. Vejo o futebol naquela dualidade de ser exemplar sobre como talvez o maior palco de representação social (pois, temos de levantar a cabeça). Naquilo que tem de mais podre o mundo dos negócios e de um industria que usa um amor e uma paixão para o simples lucro e para o poder. Olho o manejo dos idolos, nao entendo que impulso me leva a ter 10 carros que nao vou usar e o descargo de consciência de que um aperto de mão ou um visita pode levar e a lavagem constante para criar algo virtual.
    E, depois, vejo a criação das linhas do equilibrio e da ruptura que conduzem a vitórias, vejo a força que as paixóes podem ter se canalizadas, vejo a força humana da pertença, vejo o estudo, vejo as soluções... como se o futebol fosse um poço infinito onde podemos encontrar a compreensão do mundo.Onde ficamos cada dia mais ricos.
    Sim, sem duvidas, subscrevo inteiramente o seu amigo. Na verdade, futebol é cultura. Humana, técnica, de conhecimento, do ser humano. Talvez o melhor elo de ligação entre a nossa origem (terra, relva) e a a nossa humanidade (cérebro, coração)
    Continuem escrevendo por favor.
    Sol Carvalho

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    1. Caro Sol Carvalho,

      Excelente texto! Depois dele, só me ocorrem frases batidas, como diz o Sérgio Godinho.

      O futebol é uma bela metáfora. É guerra por outros meios. É loucura aceite como se não o fosse ou fosse aceitável. É capitalismo sem mercadoria ou capitalismo cuja moeda, o dinheiro, é a única mercadoria e se basta. É malabarismo com recurso aos elementos do corpo mais improváveis. É arte quando se vê o movimento de uma equipa e os traços que cada jogador deixa na relva. É o imprevisto e o imprevisível, como se a vida, a nossa vida e o nosso destino, pudesse mudar de um momento para o outro.

      No meio disto tudo estamos nós, está cada um. Não sabemos bem o que nos leva a ser deste ou daquele clube. Contamos a nós próprios histórias de crianças, com pais, avós e tios que nos fizeram como somos. Será assim? Será a história que contamos a nós próprios para justificar a loucura de ser adepto, de sofrer sem saber bem porquê? É tudo à espera da redenção, do momento que nos liberta e nos faz nascer de novo? No Sporting então, estas perguntas ficam todas sem resposta.

      Continuaremos a escrever seguramente.

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  6. Rui,

    Fiquei extremamente feliz pelo seu amigo, por sentir que ele percebeuvexactamente o que torna as suas crónicas tão especiais: uma atividade cultural, um diálogo - entendemos o futebol através do mundo, e depois, o entendemos o mundo através do futebol.

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    1. Caro ac,

      Grande frase:"entendemos o futebol através do mundo, e depois, entendemos o mundo através do futebol". É esse o diálogo, como diz.

      SL

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  7. Sorte para os dois serem amigos.
    Rui Monteiro aborda o espetaculo futebol de modo impar , cada crónica é uma peça literaria. Talvez o facto de viver longe de Lisboa seja decisivo do modo intelectual como vive o futebol e o Sporting sem nunca entrar nas tricas lisboetas.
    Sou um leitor da primeira hora.
    SL

    João Balaia

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    1. Caro João,

      Talvez a diferença para outros que escrevem sobre o Sporting é que o faço sem nenhuma agenda ou a agenda é o simples prazer de escrever e o simples prazer de ser lido. Se é mais ou menos bem escrito ou mais ou menos literário, os leitores o dirão, ficando honrado quando o dizem.

      SL

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