quarta-feira, 17 de julho de 2019

Verbos, mas também artigos, pronomes, preposições, conjunções, adjetivos e advérbios

Devo ao hóquei em patins os primórdios da minha consciência de ser português. A identidade gera-se também por oposição, isto é, pela consciência do que não somos. Os jogos de hóquei em patins entre Portugal e Espanha dos tempos da minha infância a adolescência eram as Batalhas de Aljubarrota por outros meios (pacíficos) e, por isso, perduram na minha memória. Não são tanto os jogos, mas os relatos, frenéticos e com os gritos dos golos de Portugal nos Campeonatos do Mundo e da Europa. Lembro-me da ansiedade que me assaltava quando acordava sem saber os resultados de Portugal num Campeonato do Mundo disputado no Chile e que só passava depois de o meu pai me narrar as incidências de cada jogo ouvidas na rádio de madrugada. 

Em plena “silly season”, a RTP por uma vez resolveu oferecer-nos serviço público com a transmissão dos jogos da nossa seleção no Campeonato do Mundo. O primeiro jogo que vi foi contra a Itália, na passada quinta-feira. O jogo foi muito sofrido para os nossos. Nunca conseguimos passar para a frente do resultado e em momentos críticos, nos livres diretos e nos “penalties”, apareceu o Ângelo Girão, que começou a escrever a história também na primeira pessoa do singular. O jogo seguinte, contra a Espanha, foi um pouco melhor. Nos mesmos momentos decisivos, continuou a aparecer o Ângelo Girão e fomos servindo doses de cinismo no contra-ataque. Na final, contra a Argentina, ainda equilibrámos um pouco na primeira parte. Depois, os argentinos foram arrasadores. Fisicamente os nossos jogadores não podiam com uma gata pelo rabo e não dispúnhamos de um banco como o do adversário recheado de tantos e tão bons jogadores que permitisse a sua mais frequente rotação. Valeu o estoicismo de todo eles, a capacidade de conviver sem frustração e sem quebrar com a superioridade dos outros. E havia o Ângelo Girão. Pouco a pouco, fomos compreendendo que se estava a construir história à frente dos nossos olhos. Quando o Rafa foi bater o “penalty”, pensei para mim mesmo que seria uma injustiça se o marcasse. A vitória devia ser consumado com uma última defesa de Ângelo Girão e assim aconteceu. 

Por muitos e bons anos que qualquer um de nós viva, dificilmente assistirá de novo a algo de parecido e dificilmente o esquecerá. Fomos uns privilegiados. Diremos aos nossos filhos e aos nossos netos que vimos esta final e a melhor exibição de sempre de um guarda-redes. Diremos também que esse guarda-redes não quis ser transformado em herói porque sabia muito bem que por muitos golos hipotéticos que tivesse defendido, nada se teria ganhado se não houvesse colegas como o João Rodrigues, o Hélder Nunes, o Gonçalo Alves ou o Jorge Silva que os tivessem marcado aos adversários. Diremos que tínhamos o melhor capitão de equipa de sempre que, pela sua simplicidade e simpatia (que diferença para os heróis de papel do futebol!), nos conquistou a todos e fez da vitória deles a nossa vitória. Diremos isto e muito mais, recorrendo aos verbos exclamados do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, mas também a artigos, a pronomes, a preposições, a conjunções, a adjetivos ou a advérbios.

6 comentários:

  1. Caro Rui Monteiro, a sua história é parecida com a minha. Ainda me lembro de os jogos darem na TV a preto e branco, e antes de alguns deles (de noite) o meu querido Pai, Mãe (os outros irmãos nasceriam mais tarde) e amigos (meu pai foi dos primeiros a comprar TV, lá no sítio, muito por minha influência) e deles me mandarem deitar, pois no outro dia era dia de escola primária. E eu, sorrateiramente, fingindo que estava a dormir, por uma nesga ir vendo o jogo. Lembro-me também quando quase toda a família se juntava em casa de uns tios para ver a final: Portugal-Espanha e quando era golo de Portugal, a explosão de alegria; a vizinha de cima, batia para baixo sem parar e o meu tio (com o cabo de uma vassoura) batia para cima (nunca me lembrei de ver no fim do jogo, como é que tinha ficado o estuque...). Quando ganhávamos - quase sempre - sentíamo-nos superiores aos espanhóis. Outros tempos. De puto. E de outro Portugal. Também ouvi centenas de relatos de hóquei. E vi muitos, ao vivo, em vários pavilhões, com meu Pai (sportinguista de alma e coração)- Curiosamente - com ele, vi (conjuntamente) mais jogos de Hóquei e Atletismo do que vi de Futebol (é o nosso ADN ecléctico que vem de geração em geração como cantam os Supporting).Cumprimentos.
    J.Oliveira. SL

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    1. Caro J. Oliveira,

      Também tivemos TV a preto e branca relativamente cedo, quando comparado com a maior parte das famílias da minha rua. Ia para o meu quarto quando aparecia o símbolo do telejornal. Tenho uma imagem muito viva de ver a final do Campeonato da Europa (penso que de 1977) com o meu pai. Lembro-me que ganhámos à Espanha e que a equipa era a famosa: Ramalhete-Rendeiro-Sobrinho-Chana-Livramento. Sei que estava à beira de um ataque de ansiedade.

      SL

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  2. Que saudades do 5 maravilha, que o Rui evoca (em que 4 eram sportinguistas de coração e sobre Ramalhete, tenho dúvidas se não seria). Eu achava o Chana ainda mais habilidoso que o Livramento. Mas o Livramento, era o Livramento, está tudo dito. A TV a preto e branco e só um canal com horário limitado. Outros tempos, em que já frequentava Alvalade irregularmente, e de que apenas, tenho saudades da minha infância feliz e de ver os meus familiares vivos e de saúde.
    J.OLiveira. SL

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  3. Uma colherada benfiquista:
    O melhor jogador de sempre de hóquei, Livramento, que integrou essa selecção, que foi a melhor de sempre, ganhou 7 campeonatos pelo Benfica, e a maioria dos títulos pela selecção enquanto jogador do meu clube.

    Curiosamente, foi como jogador do Sporting que ganhou o seu único titulo internacional por um clube (Taça dos campeões), apesar de também ter jogado em Itália, e como treinador, a taça Cers e a Taça das Taças.
    Ganhou apenas um campeonato nacional pelo Sporting.

    Quanto a esta vitória inesperada, pelo menos para mim, ao ver a 2ª parte, deve-se ao GR, o Girão, apesar do grupo ser bastante solidário e unido.

    Uma barreira intransponível.

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    1. Meu caro,

      Quando via os jogos com o meu pai ou ouvia os relatos nem sabia sequer a que clubes pertenciam os jogadores. Eram portugueses, jogavam na seleção nacional e isso bastava e sobrava.

      Neste campeonato nem sei de quem gostei mais. Dentro do campo, manifestamente o Ângelo Girão. Fora do campo, o João Rodrigues. O capitão de equipa é um senhor e talvez isso explique a união entre todos.

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    2. Sim, sempre foi um senhor o João, mas não fosse o Girão e acho que não havia taça para ninguem, eheheh

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